quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Modernidade e Segurança Ontológica...

                                                                                                      Van Gogh
Anthony Giddens (1991, p. 77) utiliza a imagem do Carro de Jagrená como metáfora da modernidade, indicando que esta se assemelha a um veículo desgovernado, cuja direção não podemos controlar, mas também não podemos “pular fora”. A metáfora indica que a modernidade produziu um mundo perigoso. A sociedade atual é identificada a sentimentos de desorientação e mal-estar. Estaríamos num período de transição, de liminaridade.

“A modernidade é inerentemente globalizante”, afirma Giddens. (id., p. 69) A era da globalização impõe transformações universalizantes que reconfiguram a tradição, levam a seu abandono ou desincorporação. O local encontra-se de tal forma conectado ao global que influencia e é influenciado por este. A tradição vivenciada no locus do cotidiano, no espaço específico, é colocada em questão pela experiência vivenciada do indivíduo no tempo e espaço global. Por outro lado, o local também problematiza o global.

Giddens (1997, pp. 74-75) observa que: “Poucas pessoas, em qualquer lugar do mundo, podem continuar sem consciência do fato de que suas atividades locais são influenciadas, e às vezes até determinadas, por acontecimentos ou organismos distantes”. Porém, não é tão evidente o fato de que “as ações cotidianas de um indivíduo produzem conseqüências globais. Minha decisão de comprar uma determinada peça de roupa, por exemplo, ou um tipo específico de alimento, tem múltiplas implicações globais”.

Há uma interdependência cada vez maior entre o espaço global e o local. O global tem influência sobre as vidas individuais nos espaços locais; mas também as decisões dos indivíduos em seu cotidiano podem influenciar sobre os resultados globais. Esta inter-influência incide sobre as coletividades e grupos de todos os tipos, incluindo o Estado. Isto pressupõe repensar os papéis, sua reorganização e reformulação.

A modernidade nas condições da globalização amplia as incertezas e os perigos. Daí a sensação de mal-estar e de desorientação. O mundo tornou-se cada vez mais um lugar inseguro e essa insegurança é sentida pelo indivíduo em sua mais remota comunidade. A experiência da modernidade colocou por terra as certezas: as surpresas e os riscos estão sempre à espreita e o futuro parece uma impossibilidade se pensado enquanto construção histórica. A modernidade na globalização se assemelha a uma grande e perigosa aventura, à qual, independente da nossa vontade, estamos vinculados. É o Carro de Jagrená!

As experiências do cotidiano no mundo atual vinculam-se às questões fundamentais relativas à identidade, à percepção do “eu” e do “outro”; e, por outro lado, envolvem múltiplas mudanças e adaptações na vida cotidiana. Em tais circunstâncias, os indivíduos “sentem-se no ar” e, inseguros, se apegam à tradição. Eles resistem localmente à globalização e, simultaneamente, não podem desconsiderá-la.

A modernidade solapa a confiança fundada nos valores tradicionais e pressupõe um novo ambiente em que possa se desenvolver a “segurança ontológica”, isto é, o “ser no mundo”. A segurança ontológica “se refere à crença que a maioria das pessoas têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes”. (Id., p. 95) Ela diz respeito ao sentimento que temos sobre a continuidade das coisas e das pessoas; um sentimento inculcado desde a infância e que se vincula à rotina e à influência do hábito. A necessidade de “segurança ontológica” produz novo ambiente de confiança. O reencantamento religioso e a busca crescente do ambiente sagrado, não seriam motivados por essa necessidade de “segurança ontológica”? Não é essa a essência do envolvimento religioso?

Eduardo Meksenas disse...
É que sempre é bom lembrar que o Anthony Giddens é um autor de direita (suas análises limitam-se aos efeitos super-estruturais, sem alcançar as causas estruturais) e conservador (acha que a realidade não pode ser essencialmente modificada e tornar-se muito diferente do que está aí). Além do mais, é um pensador que se filia ao pós-modernismo (despreza as grandes narrativas explicativas como o marxismo e o freudismo, por exemplo, além de achar que o capitalismo provou que veio para ficar eternamente, é o sistema ideal e eterno para a humanidade, estamos no "fim da História").

O pós-modernismo andou em voga nos EUA e parte da Europa nos anos 80 e 90, tendo como expoentes Daniel Bell, Richard Rorty, Allain Touraine, Lyotard, Francis Fukuyama e outros - todos de pensamento enganoso e limitado, cujas falácias já foram demonstradas por pensadores como Fredric Jameson, Terry Eagleton, David Harvey, Perry Anderson, Tonio Negri e outros.

Que o transitório, o fugidio, o disperso, o contraditório sejam características da modernidade já foi muito explorado desde Rousseau e Baudelaire, passando por Marx e, atualmente, chegando em Berman e Harvey. Mas esses autores também constatam a existência de uma “âncora” no moderno, um lado que é mais sedentário contrapondo-se ao nomadismo delirante, é mais planejado que aventureiro delirante, tem os pés no chão, e procura aquilo que é a essência, o imutável, o eterno. Para tais pensadores, a modernidade mesmo sendo desagregadora, volátil e fragmentada, também tem seu lado agregador, sólido, humano e pode ser apreendido e entendido a partir de uma visão de totalidade.

Giddens atém-se a apenas um aspecto da modernidade – o transitório, e o “super-sujeito” como forma de vivê-lo. E caracteriza-a como um eterno presente, impossível de ser modificado – mas não questiona nem muito menos responde por que a modernidade tem esse lado disperso, transitório e fragmentado. Ele previlegia o sujeito (a ontologia) em detrimento do conhecimento(a epistemologia), negando a este último a validade histórica que teve até então. Giddens e os pós –modernos em geral desconfiam da História e de podermos conhecê-la em autenticidade, e entendem que o conhecimento é a instrumentalização do ser humano; rejeitam a visão de totalidade sobre os fenômenos e eventos, como o marxismo, o cristianismo, o darwinismo, o freudismo – tidos como mera ilusão, pois ao sujeito é impossível explicar e conhecer verdadeiramente: a história é uma projeção de nossa própria visão atual, a ciência é um feixe de ilusões. Rejeitam o racionalismo iluminista, por ser responsável por tantos totalitarismos políticos nefastos e destruidores, esquecendo que há uma outra vertente do iluminismo, que é libertadora, emancipadora, humanista, que vem desde Nicolau de Cusa, passa por Dante e Giordano Bruno, e chega a Espinosa e Condorcet.

O que é globalismo? Existe apenas um tipo de globalização? Por que a globalização e a modernidade apresentam aquelas características descritas por Giddens? A estas questões ele não reponde, sequer as coloca.

Giddens e os seus passam batidos pelos efeitos capitalistas do mercado, agora globalizados; as conseqüências de uma economia global de mercado e de uma sociedade de mercado são que a vida tornou-se uma mercadoria, a cultura, a solidariedade, o pensamento, as pessoas: tudo é mercadoria numa sociedade globalizada de mercado; os sentimentos e ações são mercadorias; a ciência, o conhecimento. A arte. Até a miséria e a tragédia, se transformadas em mercadorias, ficam mais charmosas e aceitáveis, e rendem bons lucros à industria da comunicação. Só a mercadoria é que está conectada, e só tem valor aquilo que pode ser expresso e convertido em moeda, inclusive as pessoas e países.. Daí a insegurança, a falta de perspectiva e de sentido, o medo, o isolamento, o individualismo exacerbado. A descrença, a apatia, o abulismo. É isto que merece ser refletido, para buscar-se as alternativas capazes de re- direcionar o globalismo. Sejamos globais, sim (aliás, este era um velho sonho das 3 Internacionais, lembram?), mas em outros termos, que devem ser elaborados. Resistamos ao globalismo nivelador e predador, coisificador e massificador, mas através de outras formas de luta que ainda não conhecemos, e que precisam ser elaboradas.

O texto do Ozaí é muito melhor do que o livro do Giddens, pois vai além e não descarta a esperança nem a humanização, ainda vê o presente como passo para o futuro, e entende que a História não terminou – pontos que Anthony Giddens considera superados. Realmente, para uma determinada classe social –a elite, e a elite da elite – seria muito bom se a vida e o mundo fossem como Anthony e os demais pós-modernos a descrevem: poderiam dormir tranquilamente per omnia saecula seculorum. Mas não é: no silêncio de uma sociedade coisificada, às escuras, a chama de um humanismo tênue se acende, e aquece a Multidão que vai tomando corpo, vai formando-se lenta e imperceptivelmente, seus afluentes surgindo de vários lugares e classes, e vem chegando, grávida de humanismo e energia. Ávida por vida, e por conquistar espaço e condições para essa vida em plenitude dentro de uma sociedade globalizada.