quinta-feira, 30 de setembro de 2010

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Estado-providência...





O conceito político de Estado-providência, ou Estado social, veio substituir o conceito de Estado liberal.

Efectivamente, no Estado liberal entendia-se que ninguém melhor do que cada indivíduo deveria saber escolher as suas próprias necessidades e o modo mais eficaz de as satisfazer. Assim, o Estado teria apenas o papel de criar as condições necessárias ao livre exercício dos direitos naturais dos cidadãos e deveria abster-se quanto a qualquer conduta que pudesse perturbá-lo.

Mas a "mão invisível" com que os economistas liberais julgavam poder disciplinar o mercado e satisfazer os interesses individuais e colectivos veio, afinal, a revelar-se ineficaz, traduzindo-se em enormes carências na prestação de serviços públicos essenciais e lançando no desemprego e na miséria largas camadas da população. Foi a partir da Primeira Grande Guerra que o Estado liberal mostrou os sinais da sua falência, pois foi incapaz de superar as crises e destruições causadas pelo conflito. Mas foi, sobretudo, em consequência do período de agitação político-social, da crise económica e financeira em que se vivera até 1940 e que se veria agravada pela Segunda Guerra Mundial e o esforço de recuperação consequente, que viria a ganhar maior relevo e a ser assumido com maior convicção o facto de que não se poderia mais pensar Estado e Sociedade como entes autónomos.

No Estado-providência ou Estado social, reclama-se agora a intervenção profunda e condicionante do Estado sobre a orgânica e o funcionamento da sociedade. É assim que, pelo menos em certos países e no âmbito de certas ideologias, as concepções de Estado, de liberal e abstencionista, vão passar a considerá-lo numa perspectiva intervencionista e de preocupação social.

Do Estado vai-se exigir que ele seja o modelador, o conformador da vida económica e social, como produtor de bens, como empresário, como agente de crédito, como organizador de serviços públicos. O Estado deverá definir as metas que à sociedade interessa alcançar e a ele cabe, igualmente, o planeamento, a orientação e o controle da actividade dos restantes sujeitos económicos, com vista a que tais objectivos sejam efectivamente realizados. A realidade económica e social passa a ser um material que ao Estado compete estruturar de acordo com outras condicionantes, nomeadamente as de carácter político-jurídico.

Assim, o Estado irá intervir pelas formas e para os fins mais variados, dirigindo, incentivando ou fiscalizando, por meios autoritários ou não, a actividade dos restantes sujeitos económicos e sociais, participando ele próprio, como sujeito, nessas tarefas, produzindo, comercializando e distribuindo inúmeros bens e serviços úteis à colectividade. Exemplo de um serviço de solidariedade do Estado é a Segurança Social, que deveria garantir o mínimo de sobrevivência condigna em todas as situações de carência. O Estado deveria garantir, igualmente, o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde.

Deste modo, o Estado estende-se a quase todos os ramos da vida económica e social, desde a organização das forças militares e militarizadas até à conservação do património cultural imobiliário e artístico, passando pelo ensino, pelos tansportes, pelas comunicações, pelo abastecimento de água e energia, pelo saneamento básico e a salubridade pública, pela construção da rede de estradas e demais vias de circulação, pela racionalização e organização dos serviços de comercialização, pelo regular abastecimento de bens essenciais agrícolas e industriais, pelo controlo e vigilância das fronteiras, pelo incentivo à exportação e ao turismo, pelo crédito às actividades industriais e comerciais e aos consumos sociais, pela regulação e fiscalização das relações laborais, pela saúde pública, pelo controlo das actividades económicas e das importações, pelo povoamento florestal, pelo reordenamento agrícola e por um sem número de outros sectores e serviços destinados à satisfação de tantas necessidades colectivas e, até, individuais.

É este o conceito basilar e estrito de Estado-providência. No vocabulário político contemporâneo, porém, esse conceito aparece muitas vezes a exprimir uma ideia menos absoluta do papel do Estado (ou seja, com um grau menor de intervenção), na qual, em todo o caso, a recusa de um liberalismo tido por excessivo e perigoso é uma característica que se mantém.

FONTE: Infopédia

Como referenciar este artigo:

Estado-providência. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-08-27].

terça-feira, 28 de setembro de 2010

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

sábado, 25 de setembro de 2010

No Eco da Tua Voz...

Uma Silva sucessora de um Silva?...

                                                                                                                  Crédito: Band
Qual é a pessoa com carisma, com base popular, ligada aos fundamentos do PT e que se fez ícone da causa ecológica? É uma mulher, seringueira, da Igreja da libertação, amazônica. Ela também é uma Silva como Lula. Seu nome é Marina Osmarina Silva.

Não estou ligado a nenhum partido, pois para mim partido é parte. Eu como intelectual me interesso pelo todo embora, concretamente, saiba que o todo passa pela parte. Tal posição me confere a iberdade de emitir opiniões pessoais e descompromissadas com os partidos.

De forma antecipada se lançou a disputa: Quem será o sucessor do carismático presidente Luiz Inácio Lula da Silva?

De antemão afirmo que a eleição de Lula é uma conquista do povo brasileiro, principalmente daqueles que foram sempre colocados à margem do poder. Ele introduziu uma ruptura histórica como novo sujeito político e isso parece ser sem retorno. Não conseguiu escapar da lógica macro-econômica que privilegia o capital e mantém as bases que permitem a acumulação das classes opulentas. Mas introduziu uma transição de um estado privatista e neoliberal para um governo republicano e social que confere centralidade à coisa pública (res publica), o que tem beneficiado vários milhões de pessoas. Tarefa primeira de um governante é cuidar da vida de seu povo e isso Lula o fez sem nunca trair suas origens de sobrevivente da grande tribulação brasileira.

Depois de oito anos de governo se lança a questão que seguramente interessa à cidadania e não só ao PT: quem será seu sucessor? Para responder a esta questão precisamos ganhar altura e dar-nos conta das mudanças ocorridas no Brasil e no mundo. Em oito anos muta coisa mudou. O PT foi submetido a duras provas e importa reconhecer que nem sempre esteve à altura do momento e às bases que o sustentam. Estamos ainda esperando uma vigorosa autocrítica interna a propósito de presumido “mensalação”. Nós cidadãos não perdoamos esta falta de transparência e de coragem cívica e ética.

Em grande parte, o PT viou um partido eleitoreiro, interessado em ganhar eleições em todos os níveis. Para isso se obrigou a fazer coligações muito questionáveis, em alguns casos, com a parte mais podre dos partidos, em nome da governabilidade que, não raro, se colocou acima da ética e dos propósitos fundadores do PT.

Há uma ilusão que o PT deve romper: imaginar-se a realização do sonho e da utopia do povo brasileiro. Seria rebaixar o povo, pois este não se contenta com pequenos sonhos e utopias de horizonte tacanho. Eu que circulo, em função de meu trabalho, pelas bases da sociedade vejo que se esvaziou a discussão sobre “que Brasil queremos”, discussão que animou por decênios o imaginário popular. Houve uma inegável despolitização em razão de o PT ter ocupado o poder. Fez o que pôde quando podia ter feito mais, especialmente com referência à reforma agrária e a inclusão estratégica (e não meramente pontual) da ecologia.

Quer dizer, o sucessor não pode se contentar de fazer mais do mesmo. Importa introduzir mudanças. E a grande mudança na realidade e na consciência da humanidade é o fato de que a Terra já mudou. A roda do aquecimento global não pode mais ser parada, apenas retardada em sua velocidade. A partir de 23 de setembro de 2008 sabemos que a Terra como conjunto de ecosissitemas com seus recursos e serviços já se tornou insustentável porque o consumo humano, especialmente dos ricos que esbanjam, já psssou em 40% de sua capacidade de reposição.

Esta conjuntura que, se não for tomada a sério, pode levar nos próximos decênios a uma tragédia ecológicohumanitária de proporções inimagináveis e, até pelo final do século, ao desaparecimento da espécie humana. Cabe reconhecer que o PT não incorporou a dimensão ecológica no cerne de seu projeto político. E o Brasil será decisivo para o equilíbrio do planeta e para o futuro da vida.

Qual é a pessoa com carisma, com base popular, ligada aos fundamentos do PT e que se fez ícone da causa ecológica? É uma mulher, seringueira, da Igreja da libertação, amazônica. Ela também é uma Silva como Lula. Seu nome é Marina Osmarina Silva.

Por Leonardo Boff

Fonte: Dom Total




sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Quantas Cores o Vento tem?...

Em nome de quê?...

Muitos pais, professores e psicólogos se queixam de que parcela considerável da juventude carece de referências morais. Inúmeros jovens mergulham de cabeça na onda neoliberal de relativização de valores. Tornam público o privado (vide YouTube), são indiferentes à política e à religião, praticam sexo como esporte e, em matéria de valores, preferem os do mercado financeiro.

Sou da geração que fez 20 anos de idade na década de 1960. Geração literalmente inovadora (a Bossa era Nova, o Cinema era Novo etc.), que injetava utopia na veia e se pautava por ideologias altruístas. Queríamos apenas mudar o mundo. Derrubar as ditaduras, a fome e miséria, as desigualdades sociais, o imperialismo e o moralismo.

Em nome do mundo sem opressão, que muitos de nós identificávamos com o socialismo, lutamos pela emancipação da mulher, contra o apartheid e em defesa dos povos indígenas. Sobretudo trouxemos ao centro da roda a questão ecológica. Já a geração de nossos pais acreditava na indissolubilidade do casamento, na virgindade pré-conjugal como valor, na religião como inspiradora da conduta moral, na prevalência da produção sobre a especulação. Em nome de Deus, as consciências estavam marcadas pelo estigma do pecado.

Todas as gerações têm aspectos positivos e negativos. Se a minha se nutriu de ideologias libertárias, que nela incutiram espírito de sacrifício e solidariedade, a de meus pais acreditou na perene estabilidade das quatro instituições pilares da modernidade: a religião, a família, a escola e o Estado.
Esta geração da primeira metade do século XX não logrou superar o patriarcalismo, o preconceito a quem não lhe era racial e socialmente semelhante, a fé positivista nos benefícios universais da ciência e da tecnologia.

A geração posterior, a da segunda metade do século passado, promoveu a ruptura entre sentimento e sexualidade; idealizou os modelos soviético e chinês de socialismo, com seus gulags e suas “revoluções culturais”; e hoje troca a militância revolucionária pelo direito de ser burguesa sem culpa.

Ora, a crescente autonomia do indivíduo, apregoada pelo neoliberalismo, faz com que muitos jovens se perguntem: em nome de quê devemos aceitar normas morais além das que decido que me convêm? E as adotam convencidos de que elas possuem prazo de validade tão curto quanto o hambúrguer da esquina.

Se a repressão marcou a geração de meus pais e a revolução (política, sexual, religiosa etc.) a de minha juventude, hoje o estímulo à perversão ameaça os jovens. Respira-se uma cultura de desculpabilização, já que, na travessia do rio, se deu as costas à noção de pecado e ainda não se aportou na interiorização da ética. Parafraseando Dostoiévski, é como se Deus não existisse e, portanto, tudo fosse permitido.

Quem é hoje o enunciador coletivo capaz de ditar, com autoridade, o comportamento moral? A Igreja? A católica certamente não, pois pesquisas comprovam que a maioria de seus fiéis, malgrado proibições oficiais, usa preservativo, não valoriza a virgindade pré-matrimonial e frequenta os sacramentos após contrair nova relação conjugal. As evangélicas ainda insistem no moralismo individual, sem olho crítico para o caráter antiético das estruturas sociais e a natureza desumana do capitalismo.

Onde a voz autorizada? O Estado certamente não é, já que pauta suas decisões de acordo com o jogo do poder e o faturamento eleitoral. Hoje ele condena o desmatamento da Amazônia, os transgênicos, o trabalho escravo, e amanhã aprova seja lá o que for para não perder apoio político.

O enunciador coletivo, o Grande Sujeito, existe: é o Mercado. Ele corrompe crianças, no modo de induzi-las ao consumismo precoce; corrompe jovens, no modo de seduzi-los a priorizar como valores a fama, a fortuna e a estética individual; corrompe famílias através da hipnose televisiva que expõe nos lares o entretenimento pornográfico. E para proteger seus interesses, o Mercado reage violentamente quando se pretende impor-lhe limites. Furioso, grita que é censura, é terrorismo, é estatização, é sabotagem!

As futuras gerações haverão de conhecer a barbárie ou a civilização? A neurose da competitividade ou a ética da solidariedade? A globocolonização ou a globalização do respeito e da promoção dos direitos humanos – a dimensão social do amor?

Pais, professores, psicólogos, e todos que se interessam pela juventude, estão desafiados a dar resposta positiva a tais questões.

Por Frei Betto

Fonte: Dom Total

Uma Rosa Branca...

A Dilma, meu Deus, a Dilma...

Deveria ficar contente com a certa e futura eleição de Dilma Rousseff, candidata do PT, como Presidente do Brasil. Dilma será a primeira mulher presidente de um grande país e de uma potência. Não fico. Dilma é uma sucessora dinástica, 'geneticamente modificada' por Lula da Silva, para manter a hegemonia e o poder quase absoluto do PT, o Partido dos Trabalhadores, sobre o Brasil. Numa democracia mais primitiva, Dilma seria a filha, a viúva, a mulher, a descendente ungida pela tradição e o paternalismo deste peronismo brasileiro.

Nada a opor à colorida biografia de Dilma. Resistente, fez parte da luta armada contra a ditadura, foi presa e torturada. Em 2009 foi-lhe diagnosticado um linfoma que ela tem combatido e ignorado como uma obstrução menor. É corajosa e tem título académico. Como economista, manterá a linha de rumo que tem trazido óbvias vantagens ao Brasil e aos pobres do Brasil. Simplesmente, Lula não é o herói dentro do Brasil que é fora do Brasil, apesar dos comportamentos erráticos em política externa (o cartel com Chávez e Ahmadinejad, o golpe das Honduras, etc.). Dentro do Brasil, gente que votou em Lula e no PT está farta de Lula e do PT, e sobretudo da tropa corrupta que segura Lula e o PT. O Brasil gasta 2% a 5% do seu orçamento em educação e saúde, e gasta 38% desse orçamento para pagar os juros da dívida pública. Estes juros da dívida pública vão parar às mãos de 20 mil famílias brasileiras, que entre si concentram a riqueza do país. A desigualdade em todo o seu esplendor. A criação de sistemas de subsídios e bolsas tem feito muita gente sair da pobreza e tem criado uma incipiente classe média mas, dizem os especialistas, a cornucópia da riqueza esgota-se e, no final, o défice brasileiro será brutal e a carga fiscal (que já é das maiores nos mercados emergentes) aumentará. Em vez de construir pela solidez, o Brasil pode vir a encontrar-se numa situação de rutura.

Lula tem muitas qualidades e muitos defeitos. Um dos defeitos é o de proteger e nomear uma camarilha que se tem revelado corrupta e generosa na rapina dos cofres do Estado e nas negociatas com os milionários e potentados do Brasil. José Dirceu, antecessor de Dilma na chefia da Casa Civil e o homem-chave do "mensalão" (um caso de corrupção que teria liquidado um político na Europa ou nos Estados Unidos) continua a ser o go-between entre Lula e os apoiantes ricos. Eike Batista, um dos homens mais ricos do mundo e o mais rico do Brasil, é um deles. Milionários que o apoiarão enquanto o poder estiver concentrado nas mãos dele, e que o voltarão a apoiar caso ele se recandidate em 2014. Outro defeito é o populismo que criou um discurso e uma liturgia destinados a convencer os mais pobres e ignorantes de que Lula é o santo protetor e pai de todos.

A revista "Veja" tem estado à cabeça das publicações que têm revelado escândalo atrás de escândalo. O desta semana, nepotismo e corrupção, enlameia o braço direito de Dilma, Erenice Gomes, sua sucessora na Casa Civil e companheira de jornada. É um escândalo feio, que envolve proteções e milhões e, como apareceu Lula no "mensalão", aparece Dilma a dizer que nada sabia, não viu, não estava lá. A história de Dilma e Erenice é longa, e juntas estiveram envolvidas noutro 'caso feio', o caso Varig. A Casa Civil parece ser o lugar ideal para fazer mão baixa sobre o tesouro. "Maracutaia", diz o candidato da oposição José Serra.

Lula não hesitará em fazer alianças com partidos com agendas políticas que nada têm a ver com a esquerda ou com o PT, como já acontece. Parece que se instalou uma política de vale-tudo, cheia de demagogia e oligarquias. A eleição de Dilma, e o facto de o PT se preparar para ganhar em 17 dos 27 estados, colocando governadores, pode conduzir o PT a mais uma década de poder sem oposição, com uma coligação sustentada pelo interesse comum. A isto pode chamar-se, e os politólogos chamam, a mexicanização da política brasileira. Muitos jornalistas brasileiros dizem que se prepara legislação para impedir a imprensa de fazer o seu trabalho. Destruir o jornalismo incómodo, pressioná-lo.

Lula pode comprar o coração do povo mas não comprará a inteligência da classe média brasileira, que assiste a isto com horror e náusea. O chavismo não é característico de Chávez, é uma espécie de doença crónica da América do Sul. O Brasil não merecerá isto e a democracia também não.

Nota: O regime iraniano, que se entretém a jogar xadrez com as vidas das mulheres (veja-se o caso da condenada a lapidação), acaba de libertar a americana Sarah Shourd, 32 anos, por motivos de saúde. Sarah tem um nódulo na mama. Mais de um ano de prisão, apanhada com dois amigos a fazer caminhadas na zona de fronteira com o Curdistão. Os outros ficaram. Acusados de espionagem. Sarah foi libertada para que Ahmadinejad vá fazer o número anual nas Nações Unidas. Lula tem amigos estranhos.

Texto publicado na revista Única de 18 de setembro de 2010

Por Clara Ferreira Alves

Fonte: Expresso Online

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A hora e a vez da ecologia mental...

                                               Imagem Floresta Amazônica, Internet
No dia 2 de fevereiro de 2007 ao ouvir em Paris os resultados acerca do aquecimento global dados a conhecer pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) o então Presidente Jacques Chirac disse:”Como nunca antes, temos que tomar a palavra revolução ao pé da letra. Se não o fizermos o futuro da Terra e da Humanidade é posto em risco”. Outras vozes já antes, como a de Gorbachev e de Claude Levy Strauss pouco antes de morrer. advertiam: “ou mudamos de valores civilizatórios ou a Terra poderá continuar sem nós”.

Esse é o ponto ocultado nos forums mundiais, especialmente o de Copenhague. Se for reconhecido abertamente, ele implica uma autocondenação do tipo de produção e de consumo com sua cultura mundialmente vigente. Não basta que o IPCC diga que, em grande parte, o aquecimento agora irreversível é produzido pelos seres humanos. Essa á uma generalização que esconde os verdadeiros culpados: são aqueles homens e mulheres que formularam, implantaram e globalizaram o modo de produção de bens materiais e os estilos de consumo que implicam depredação da natureza, clamorosa falta de solidariedade entre as atuais e as futuras gerações.

Pouco adianta gastar tempo e palavras para encontrar soluções técnicas e políticas para a diminuição dos níveis de gases de efeito estufa se mantivermos este tipo de civilização. É como se uma voz dissesse: “pare de fumar, caso contrário vai morrer”; e outra dissesse o contrario: “continue fumando, pois ajuda a produção que ajuda criar empregos que ajudam garantir os salários que ajudam o consumo que ajuda aumentar o PIB”. E assim alegremente, como nos tempos do velho Noé, vamos ao encontro de um dilúvio pré-anunciado.

Não somos tão obtusos a ponto de dizer que não precisamos de política e de técnica. Precisamos muito delas. Mas é ilusório pensar que nelas está a solução. Elas devem ser incorporadas dentro de um outro paradigma de civilização que não reproduza as perversidades atuais. Por isso, não basta uma ecologia ambiental que vê o problema no ambiente e na Terra. Terra e ambiente não são o problema. Nós é que somos o problema, o verdadeiro Satã da Terra quando deveríamos ser seu Anjo da Guarda. Então: importa fazer, consoante Chirac, uma revolução. Mas como fazer uma revolução sem revolucionários?

Estes precisam ser suscitados. E que falta nos faz um Paulo Freire ecológico! Ele sabiamente dizia algo que se aplica ao nosso caso:”Não é a educação que vai mudar o mundo. A educação vai mudar as pessoas que vão mudar o mundo”. Precisamos destas pessoas revolucionárias, caso contrario, preparemo-nos para o pior, porque o sistema imperante é totalmente alienado, estupificado, arrogante e cego diante de seus próprios defeitos. Ele é a treva e não a luz do túnel em que nos metemos.

É neste contexto que invocamos uma das quatro tendências da ecologia (ambiental, social, mental, integral): a ecologia mental. Ela trabalha com aquilo que perpassa a nossa mente e o nosso coração. Qual é a visão de mundo que temos? Que valores dão rumo à nossa vida? Cultivamos uma dimensão espiritual? Como nos devemos relacionar com os outros e com a natureza? Que fazemos para conservar a vitalidade e a integridade de nossa Casa Comum, a Mãe Terra?

Não dá em poucas linhas traçar o desenho principal da ecologia mental, coisa que fizemos um inúmeras obras e vídeos. O primeiro passo é assumir o legado dos astronautas que viram a Terra de fora da Terra e se deram conta de que Terra e Humanidade foram uma entidade única e inseparável e que ela é parcela de um todo cósmico. O segundo, é saber que somos Terra que sente, pensa e ama, por isso homo (homem e mulher) vem de húmus (terra fecunda). O terceiro que nossa missão no conjunto dos seres é de sermos os guardiães e os responsáveis pelo destino feliz ou trágico desta Terra, feita nossa Casa Comum. O quarto é que junto com o capital natural que garante nossa bem estar material, deve vir o capital espiritual que assegura aqueles valores sem os quais não vivemos humanamente, como a boa-vontade, a cooperação, a compaixão, a tolerância, a justa medida, a contenção do desejo, o cuidado essencial e o amor.

Estes são alguns dos eixos que sustentam um novo ensaio civilizatório, amigo da vida, da natureza e da Terra. Ou aprendemos estas coisas pelo convencimento ou pelo padecimento. Este é o caminho que a história nos ensina...
Por Leonardo Boff
Fonte: Dom Total

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Voyage...

A arte de ouvir...

                                                                    Thomas Kinkade
De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio.” É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta: “Cessa o teu canto! Cessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que não havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema não está nas palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz chorar.

Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para por um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio, é como se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o elevador pare.
Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do filme é “Aconteceu em Tóquio”. Duas velhinhas se visitavam. Por horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam porque no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no Vazio da jarra que se colocam flores.
O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha primeira professora, Da. Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com estupros verbais.

Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar de si até que a primeira consiga por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’Essa frase ‘é exatamente como eu...’ parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro...”
Será que era isso que acontecia na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do aluno ( pois não é essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão porque há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não haja cursos de escutatória. Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.
Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos procuram um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda criança também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica italiana “Cem Mondialità” a sugestão de que, antes de se iniciarem as atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche.
Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar claro. Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...

Por Rubem Alves

Fonte: A Casa de Rubem Alves

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Enquanto morrem as rosas...

                                                                                                                       Thomas Kinkade
Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.
Fora, a mortiça luz do crepúsculo arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde ...

Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...

Morre o teu sonho?... Neste instante o pensamento
Acabrunha o meu ser com um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize, neste momento
Morre o teu sonho?...

BANDEIRA, M. Estrela da Vida Inteira. São Paulo: Círculo do Livro, 1998.

Fonte: Nova Escola

domingo, 19 de setembro de 2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Nosso Mundo...

Se essa rua fosse minha...

Se essa rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
não para automóvel matar gente,
mas para criança brincar.

Se esta mata fosse minha,
eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
Onde é que os pássaros vão morar?

Se este rio fosse meu,
eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte,
que os peixes moram aqui.

Se este mundo fosse meu,
eu fazia tantas mudanças
que ele seria um paraíso
de bichos, plantas e crianças...


PAES, José Paulo. Poemas Para Brincar. São Paulo: Ática, 2002.

Fonte: Nova Escola

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A pobreza da democracia brasileira...

                                                                       Imagem blog Suasemana.tur: Gameleira, Acre
Tempos de campanha eleitoral oferecem ocasião para fazermos reflexões críticas sobre o tipo de democracia que predomina entre nós. É prova de democracia o fato de que mais de cem milhões tenham que ir às urnas para escolher seus candidatos. Mas isso ainda não diz nada acerca da qualidade de nossa democracia. Ela é de uma pobreza espantosa ou, numa linguagem mais suave, é uma “democracia de baixa intensidade”na expressão do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Por que é pobre? Valho-lhe das palavras de uma cabeça brilhante que, por sua vasta obra, mereceria ser mais ouvida, Pedro Demo, de Brasília. Em sua Introdução à sociologia (2002) diz enfaticamene:”Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis “bonitas”, mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim. Políitico é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniquados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação”(p.330.333).

Essa descrição não é caricata, salvo as poucas exceções. É o que se constata dia a dia e pode ser visto pela TV e lido nos jornais: escândalos da depredação do bem público com cifras que sobem aos milhões e milhões. A impunidade grassa porque crime é coisa de pobre; o assalto criminoso aos recursos públicos é esperteza e “privilégio” de quem chegou lá, à fonte do poder. Entende-se porque, em contexto capitalista como o nosso, a democracia primeiro atende os que estão na opoulência ou têm capacidade de pressão e somente depois pensa na população atendida com políticas pobres. Os corruptos acabaram por corromper também muitos do povo. Bem observou Capistrano de Abreu em carta de l924:”Nenhum método de governo pode servir, tratando-se de povo tão visceralmente corrupto com o nosso”.

Na nossa democracia, o povo não se sente representado nos eleitos; depois de uns meses nem mais sabe em quem votou. Por isso não está habituado a acompanhá-lo e a fazer-lhe cobranças. Ao lado da pobreza material é condenado à pobreza política, mantida pelas elites. Pobreza política é o pobre não saber as razões de sua pobreza, é acreditar que os poblemas dos pobres podem ser resolvidos sem os pobres, só pelo assistencialismo estatal ou pelo clientelismo populista. Com isso, se aborta o potencial mobilizador do povo organizado que pode exigir mudanças, temidas pela classe política, e reclamar políticas públicas que atendam a suas demandas e direitos.

Mas sejamos justos. Depois das ditaduras milatares, surgiram em toda América Latina democracias de cunho social e popular que vieram de baixo e por isso fazem políticas para os de baixo, elevando seu nivel. A macroeconomia capitalista segue mas tem que negociar. A rede de movimentos sociais, especialmente o MST, colocam o Estado sob pressão e sob controle, dando sinais de que a democracia pode melhorar.

Vejo dois pontos básicos a serem conquistados: primeiro, a proposta de Boaventura de Souza Santos que é de forjar uma “democracia sem fim”, em todos os campos, especialmente na economia, pois aquí se instalou a ditadura dos patrões. Ela é mais que delegatícia, é um movimento aberto de participação, a mais ampla possivel.

O segundo, é uma idéia que defendo há anos: a democracia não pode ser antropocêntrica, só pensando nos humanos como se vivêssemos nas nuvens e sozinhos, sem nos darmos conta de que comemos, bebemos, respiramos e estamos mergulhados na natureza da qual dependemos. Então, importa articular os dois contratos, o social com o natural; incluir a natureza, as águas as florestas, os solos, os animais como novos cidadãos que têm direitos de existir conosco, especialmente os direitos da Mãe Terra. Trata-se então de uma democracia sócio-cósmica, na qual os seres humanos convivem com os demais seres, incluindo-os e não lhes fazendo mal. O PT do Acre nos mostrou que isso é possível ao articular cidadania com florestania, quer dizer, a floresta respeitada e incluida no bem viver dos povos da floresta.

Utopia? Sim, no seu melhor sentido, mostrando o rumo para onde devemos caminhar daqui para frente, dadas as mudanças ocorridas no planeta e no encontro inevitável dos povos.

Por Leonardo Boff: autor de A nova era: a civilização planetária, 2003.

(Envolverde/O autor)

Fonte: Jornal O Rebate online

Em busca de sabedoria ecológica...

       Imagem do Blog Praia da Claridade: Ruínas de construções maias no México
O paradigma civilizatório globalizado assentado sobre a guerra contra Gaia e contra a natureza está levando todo o sistema da vida a um grande impasse. Há sinais inequívocos de que a Terra não agüenta mais esta sistemática exploração de seus recursos e a ofensa continuada da dignidade de seus filhos e filhas, os seres humanos, excluídos e condenados, aos milhões, a morrer de fome. Mas precisamos estar conscientes de que esta guerra não será ganha por nós mas por Gaia. Como observava Eric Hobsbawm na última página de seu conhecido livro A era dos extremos (1994): “O futuro não pode ser a continuação do passado; nosso mundo corre o risco de explosão e implosão; tem de mudar; a alternativa para uma mudança da sociedade é a escuridão”.

Como evitar esta escuridão que pode significar a derrocada de nosso tipo de civilização e eventualmente o Armagedon da espécie humana? É imperioso revisitarmos outras civilizações que nos podem inspirar sabedoria ecológica. Há muitas. Escolho a civilização Maya, pelo simples fato de que tive a oportunidade no mês de março deste ano de freqüentar durante 20 dias as regiões da América Central habitadas ainda hoje pelos sobreviventes daquele extraordinário ensaio civilizatório e dialogado longamente com seus sábios, sacerdotes e xamãs. Daquela riqueza imensa quero ressaltar apenas dois pontos centrais que são grandes ausências em nosso modo de habitar o mundo: a cosmovisão harmônica com todos os seres e sua fascinante antropologia centrada no coração.

A sabedoria maya vem da mais alta ancestralidade e é conservada pelos avós e pelos pais. Como não passaram pela circuncisão da cultura moderna, guardam com fidelidade as antigas tradições e os ensinamentos, consignados também em escritos como no Popol-Vuh e nos Livros de Chilam Balam. A intuição básica de sua cosmovisão se aproxima muito à da moderna cosmologia e física quântica. O universo é construído e mantido por energias cósmicas pelo Criador e Formador de tudo. O que existe na natureza nasceu do encontro de amor entre o Coração do Céu com o Coração da Terra. A mãe Terra é um ser vivo que vibra, sente, intui, trabalha, engendra e alimenta a todos os seus filhos e filhas. A dualidade de base entre formação-desintegração (nós diríamos entre caos e cosmos) confere dinamismo a todo o processo universal. O bem estar humano consiste em estar permanentemente sincronizado com esse processo e cultivar um profundo respeito diante de cada ser. Então ele se sente parte consubstancial da Mãe Terra e desfruta de toda sua beleza e proteção. A própria morte não é inimiga: é um envolver-se mais radicalmente com o Universo.

Os seres humanos são vistos como “os filhos e filhas esclarecidos, os averiguadores e buscadores da existência”. Para chegar a sua plenitude o ser humano passa por três etapas, verdadeiro processo de individuação. Ele poderá ser “gente de barro”: pode falar mas não tem consistência face às águas pois se dissolve. Desenvolve-se mais e pode ser “gente de madeira”; tem entendimento, mas não alma que sente porque é rígido e inflexível. Por fim alcança a fase de “gente de milho”: este “conhece o que está perto e o que está longe”. Mas sua característica é ter coração. Por isso “sente perfeitamente, percebe o Universo, a Fonte da vida” e pulsa ao ritmo do Coração do Céu e do Coração da Terra.
Calendário Maia
A essência do humano está no coração, naquilo que viemos dizendo há anos, na razão cordial e na inteligência sensível. É dando centralidade a elas que se mostram pelo cuidado e pelo respeito que podemos nos salvar...

Por Leonardo Boff

Fonte: Internet

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Que fazes aí, Estagnado?...

O HOMEM DO SÉCULO XXI: Sujeito Autônomo ou Indivíduo Descartável...

                                                     Estatua da autonomia, Funchal
Por que escolher um tema como esse: simplesmente porque o vínculo social, no momento atual, se desfaz cada vez mais rapidamente e porque vemos aumentar uma violência que não é a violência fundadora do direito, nem a violência necessária às relações humanas (Kant notou que, sem discordância, seríamos apenas carneiros balindo), mas uma violência por excesso, um mal radical elementar, como diria Levinas, que visa suprimir não somente o indivíduo, mas o sentido, fazendo com que nada na vida tenha sentido.

Já antes da Segunda Guerra Mundial, Freud e Valéry nos preveniram. Em O mal-estar da civilização (1930), Freud notou que nós, nas sociedades ocidentais, tínhamos chegado a um nível de “tensão intolerável”, tensão política e psíquica, e que a humanidade seria capaz de se destruir definitivamente, de forma que aquilo que lhe havia permitido progredir tornar-se- ia a causa de seu desmoronamento. Paul Valéry, por seu lado, em suas Reflexões sobre o mundo atual (1945) sublinhava o fato de que “as civilizações sabem que são mortais” e a tendência das sociedades européias a renunciar à sua missão.

Acrescentamos duas frases mais recentes: a primeira, de Georges Bataille: “A humanidade inteira está ameaçada a reduzir-se a um imenso sistema de escravidão para todos”; a segunda, de D. Rousset: “Os homens normais não sabem que tudo é possível”.

Proponho, pois, uma visão trágica da vida, não para nos deixar invadir pela fatalidade, mas para examinar lucidamente se uma outra via é possível, se podemos fazer prevalecer a civilização, apesar das ambigüidades, sobre a barbárie. Partimos de uma constatação:

1. De um lado, a partir do século XIX, com o discurso sobre a emancipação e o progresso humano, e mais particularmente durante todo o século XX, vimos se afirmar a idéia de que o indivíduo devia e podia tornar-se um sujeito autônomo, sujeito histórico (como disse Walter Benjamin: “Todo indivíduo é um ser histórico”), sujeito de direito, sujeito psíquico e sujeito moral, portanto, sujeito de suas ações.

Pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, o homem é reconhecido, na sua eminente dignidade, como tendo direito a ter direitos.

Vou traçar rapidamente essa emersão do sujeito.1 O sujeito histórico, ou seja, aquele que intervém no nível político, que contribui para definir a orientação da sociedade e que participa diretamente das decisões essenciais relativas à vida e à morte, apareceu na aurora do século V a.C., em Atenas.

O cidadão (é certo que algumas pessoas não eram consideradas como tal: os escravos, os imigrantes, as mulheres, as crianças) utilizava sua liberdade para tomar parte ativa, se desejasse, do funcionamento da comunidade. Todos os cidadãos têm o mesmo direito à palavra e devem ser ouvidos no espaço público do debate, ainda que sejam os sofistas que cativem a atenção por mais tempo. Se, após o desaparecimento da democracia ateniense, esse tipo de sujeito apagou-se (a tal ponto que La Boétie pôde se perguntar se não existiria um desejo de submissão, uma servidão voluntária, permitindo ao “Um” governar, sem freios, todos os demais) durante os períodos feudais e monárquicos, ele reaparece na Inglaterra quando do estabelecimento da Bill of Rights (Carta de Direitos) e das revoluções Americana e Francesa. É certo que nem todas as pessoas receberam, imediatamente e sem resistências, os atributos da soberania (as mulheres, na França, tiveram direito ao voto apenas em 1945), mas progressivamente os diversos segmentos de uma nação puderam intervir no debate público e influenciar o caminho da nação na direção que eles consideravam a melhor.

Para que o indivíduo pudesse tornar-se um ser histórico, foi preciso naturalmente que ele se tornasse um ser de direito, ou seja, alguém que desfrute de direitos (direitos políticos, direitos civis e, mais recentemente, direitos sociais) e sobretudo que seja reconhecido como tendo o direito, como ser humano e como cidadão de um país, de gozar da totalidade dos direitos acordados (ou arrancados) ao conjunto dos cidadãos nacionais ou ao conjunto dos homens residentes num território. O sujeito de direito é, pois, um indivíduo considerado, respeitado frente a todos os outros e que está sob a proteção de uma lei semelhante para todos.

É o direito que funda a liberdade real dos homens, como pensava Rousseau. Sem o direito, cada um estaria à mercê do arbítrio do tirano, do Estado, da casta ou da classe. Mas não se trata apenas de usufruir o direito. Ser um sujeito de direito significa, igualmente, assumir-se como um ator no
estabelecimento das leis (seja diretamente, seja por intermédio de representantes) e agir ativamente para fundar e refundar a lei e para fornecer ao âmbito legal, assim formado, as suas fontes de legitimação. O sujeito de direito é constituído lentamente no debate contínuo contra as formas de dominação e, na maior parte do tempo, se consolida por meio de ações coletivas exemplares, que mostram sua força. Assim, não se pode esquecer que no fundamento do direito reside sempre a força, mas uma força que tende a se negar, visto que está na origem das obrigações sociais e da armadura jurídica nas quais se funda.

O nascimento do sujeito psíquico é mais recente. É à psicanálise que o homem moderno deve não apenas a descoberta crucial do inconsciente e, portanto, de sua divisão estrutural, mas sobretudo do reconhecimento em si de uma atividade psíquica intensa e contínua (que não se reduz às faculdades cognitivas), outorgando um grande lugar ao jogo das pulsões, dos sentimentos, dos desejos, das fantasias e dos processos de recalque, de idealização, de projeção, etc., que animam tanto a vida dos indivíduos como a do socius. Ser reconhecido como sujeito psíquico é ser respeitado em seu fórum interior, no seu trabalho de pensamento, na sua atividade de sublimação, ser protegido das “mortes psíquicas”, realizadas pelos adversários que são, às vezes, os pais, e aparecer como “o mais insubstituível dos seres”, dando às imagens de intimidade todo o seu vigor. Reconhecer-se como sujeito psíquico é, por outro lado, aprender a se defender da fantasia da dominação total (o famoso “mestre e dono da natureza”) e se perceber como um indivíduo clivado, submetido à perda, à falta, ao trabalho de luto e ao sofrimento, dívidas a pagar para poder realizar, pelo menos em parte, o programa do princípio do prazer. O sujeito psíquico é, assim, um ser que reconhece as suas contradições e os seus conflitos, sabendo que não é totalmente senhor de sua própria casa pelo fato de existir o inconsciente, submetido à vacilação e ao medo do despedaçamento, mas capaz de fazer de suas falhas o trampolim para chegar à posição de sujeito humano e de sujeito social, estando ambos intimamente ligados, providos de uma membrana protetora (de um “eu-pele”, conforme D. Anzieu) e capazes de abrir-se ao mundo. Pode-se, pois, concluir que o homem está no caminho de sua autonomia, de ditar a si mesmo as próprias regras e de ter uma visão otimista do futuro. O homem não teria mais necessidade de grandes transcendentes para conduzir a sua própria vida.

2 . Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, vê-se surgir três problemas fundamentais:

a) o reino do dinheiro, tornado um fetiche sagrado;

b) o aumento do poder do Estado;

c) um “retorno” identitário* ao grupo a que se pertence, e crença nos seus fundamentos.

Vou tentar ser mais preciso sobre esses três pontos e ver em que medida essa evolução favorece a evolução da autonomia do sujeito ou, ao contrário, a sua submissão ainda mais forte. A partir disso, tentarei verificar a possibilidade de algumas portas de saída.

Por: Eugène Enriquez, Université Paris VII
Fonte: Internet, doc pdf

Abaixo segue os três problemas fundamentais:

A - O REINO DO DINHEIRO

Está ligado à submissão cada vez mais clara de todas as nações à lei do mercado mundial, produzida pela vitória da racionalidade instrumental. Com efeito, o que triunfou a partir do século XIX e, de maneira mais evidente ainda, ao longo do século XX, não foi a racionalidade do homem tal qual fora vislumbrada no século das Luzes e pela Revolução Francesa, racionalidade dos fins últimos e dos valores irrigados pelos sentimentos e pelas paixões, tal como nos ensinaram Rousseau e Goethe, mas somente a racionalidade instrumental, aquela que se interessa apenas pelos meios a serem utilizados e que responde só à questão: como? Jamais à questão: por quê? Essa predominância se traduz pelo surgimento apenas da racionalidade econômica, aquela que permite o cálculo dos melhores meios e dos melhores métodos, cálculo de custos e de vantagens, e que submete todo mundo ao reino do dinheiro.

Essa racionalidade deformada, limitada, sinaliza o advento de uma forma de pensamento e de um estilo de ação perverso, já antecipado no século XVIII pelo marquês de Sade, ao dizer que, se o homem fosse totalmente livre, seria livre para se vender, conduzido à “venalidade generalizada”. E que, se todos os homens fossem iguais, alguns poderiam usar o seu poder e a sua riqueza que são desigualmente distribuídas para intimidar outros, para rebaixá- los ao nível de objetos, para usá-los como instrumentos de seu próprio gozo.

De certa maneira, podemos afirmar, sem risco de sermos contraditados, que o mundo atual se tornou sádico. Os antigos valores de mérito, trabalho, honra, prestígio e “a herança histórica, usada pelo capitalismo, inclusive a honestidade, a integridade, a responsabilidade, o cuidado no trabalho, o respeito aos outros” (Castoriadis, 1996), foram desvalorizados em prol de um único valor: o dinheiro.

“Tudo se compra e tudo se vende.” O axioma de L. Walras é o de nossa sociedade, de onde deriva a possibilidade de corrupção generalizada, tanto dos grandes como dos pequenos, comportamento perverso por excelência. Um novo impulso foi dado a essa tendência pela predominância contemporânea das estratégias financeiras. O dinheiro deve criar dinheiro, de acordo com a necessidade, sem passar pela mercadoria, e assim criar novas riquezas, passando por cima das estratégias industriais que visam o desenvolvimento. Assiste-se a um aumento contínuo das desigualdades internas e externas, a um papel preponderante dos acionistas e dos titulares de fundos de pensão em relação àquele dos administradores e trabalhadores; à globalização das trocas que beneficiam essencialmente aos países ricos – que sabem como se proteger quando lhes parece necessário; aos avanços tecnológicos dos países já desenvolvidos (as outras nações se encontram em situação de dependência crescente, apesar das resistências), que se tornam instrumentos das grandes potências. A guerra econômica se intensifica a cada dia.

Conseqüências ao nível coletivo: dissolução do vínculo social, exclusão ou “desvinculação social” (R. Castel, 1995), competição exacerbada, pilhagem do planeta, enfraquecimento dos movimentos sociais, diminuição das lutas sindicais, e, por outro lado, importância crescente das empresas, que querem ser “as instituições divinas”, e de suas conseqüências ao nível individual: os indivíduos devem se integrar, ou melhor, se identificar às organizações das quais fazem parte, idealizá-las, colocando os valores organizacionais – seu próprio ideal do ego – no lugar dos seus próprios

valores, transformar-se em instrumentos submissos, dóceis mesmo, e sobretudo acreditar, se lhe disserem e se eles se sentirem responsáveis enquanto sujeitos, que estão a caminho da autonomia. É a psicologização dos problemas que se coloca em prática. Uma instituição e uma organização não são menos organizadas ou geridas dentro dessa concepção. Se elas fracassam, é sempre ao indivíduo que a responsabilidade é imputada. Assim, os indivíduos estão sempre em situação de prova, em estado de estresse, sentem queimaduras internas, tomam excitantes ou tranqüilizantes para dar conta da situação, para ter bom desempenho, para mostrar sua “excelência” (entramos numa civilização de dopping); e, quando esses indivíduos não são mais úteis, eles são descartados apesar de todos os esforços despendidos. O homem tem, cada vez mais, a solidão como companheira. Ele pode se transformar em alguém “inútil ao mundo”, para retomar uma velha expressão da Idade Média, um excluído definitivo,

sem esperança de um dia voltar a ser “incluído”. No século XIX, as pessoas que formavam o “exército de reserva do capital” eram excluídas temporariamente do processo produtivo, mas sabiam que um dia poderiam voltar a fazer parte do grupo de incluídos, o que não é o caso atualmente. Para dizer algo sobre o futuro, que parece bem sombrio a esse respeito, as novas tecnologias favorecem a eliminação de milhares de pessoas no mercado de trabalho.

A racionalidade instrumental e as estratégias financeiras atingem, pois, o objetivo: utilizar o sujeito, que acredita ser em grande parte autônomo, para superexplorá-lo e aliená-lo. O processo de alienação é tão mais insidioso que muitas pessoas colaboram com a própria alienação. Tornam-se utensílios manuseados pelos dominantes no alto de sua potência. Estes últimos tornam- se cada vez ou mais perversos ou mais paranóicos porque têm o gosto pelo poder desmedido. A perversão pode, aliás, assumir duas formas:

a) uma forma ativa, na qual o perverso utiliza, com gula, os demais para torná-los dependentes e submissos, e contribuir à sua própria servidão e humilhação;

b) uma forma passiva, a apatia, tal como já observada no século XVIII por Sade. O apático é um indivíduo que não sente nenhuma emoção. É insensível, e vê os demais apenas como “coisas” abstratas, que podem, portanto, ser eliminadas física ou psiquicamente, se necessário, sem que ele se sinta nem alegre nem incomodado (esse tipo de pessoa se desenvolve em nossas sociedades, que dizem que os chefes não devem ter “états d’âme”,** e devem apenas fazer o seu trabalho da maneira mais perfeita). Esses indivíduos (paranóico, perverso ativo, perverso apático) são naturalmente hostis às pessoas desviantes, não-conformes, aos sujeitos que pensam que são “causa de si”, como indicou M. Enriquez (1984). O mundo atual tende a tornar-se o do crescimento do desprezo, da generalização da desconsideração, do desrespeito, da recusa da diferença a que tem direito todo ser humano.

B - AUMENTO DO PODER DO ESTADO

Se o indivíduo é submetido às estratégias financeiras, ele o é igualmente ao Estado do qual é cidadão. A esse respeito é preciso apontar, com H. Arendt (1973), para uma contradição entre os direitos do homem, que visam o universal no homem, e os direitos do cidadão, que insistem na especificidade desse homem e seu sentimento de pertencer a uma nação, o que faz surgir e desenvolver o apátrida, o refugiado. É certo que ele tem direitos no seu país, mas direitos que dependem apenas da boa vontade

do Estado, mesmo daquele que é democrático. Deve respeitar e submeter-se a todas as leis, mesmo àquelas que lhe parecem injustas ou arbitrárias, e mesmo se for tratado como cidadão de segunda classe, como o são os trabalhadores informais da América Latina.

Ele é também submetido à vontade de seu Estado de fazer guerra às demais nações (que foi no século XX, na maior parte do tempo, uma guerra ideológica, total e de massa) ou à suas próprias determinações (guerra civil, genocídios do tipo que se viu no Camboja, em Ruanda, por exemplo). O

homem não deve ser apenas um trabalhador que contribui para a riqueza de sua nação, ele deve ser e querer ser um guerreiro. Não é sem motivo que E. Jünger, em seu livro Le travailleur et la mobilisation totale (1930), unificou as figuras do trabalhador e do guerreiro: todo trabalhador permite à sua nação ganhar, portanto ele é um guerreiro; todo guerreiro realiza um trabalho necessário à nação – preservá-la de outras ou de levantes internos –; ele é, portanto, um trabalhador. De qualquer forma, o Estado pode

exigir dele uma identificação completa aos seus valores – como no caso da Alemanha nazista e do sistema totalitário soviético – e definir quem tem o direito e o dever de fazer parte do Estado-nação e quem deve ser descartado, rejeitado ou eliminado. Algumas pessoas tornam-se indivíduos cuja “vida é indigna de ser vivida”. Aquele que não é incluso no discurso do amo r comum não é digno de viver, daí os campos de concentração e os campos de morte.

Michel Foucault escreveu estas linhas que nos convidam a meditar: “O homem, durante milhares de anos, era aquilo que dele pensava Aristóteles, um animal vivo e cada vez mais capaz de uma existência política. O homem moderno é um animal vivo cuja vida é constantemente questionada,

não importa o que ele faça”.3 Ele mostra, assim, que nascia a biopolítica, ou seja, que a vida tal como ela era, tornara-se uma questão política. O que leva G. Agamben, autor de Homo sacer (1997) a dizer:

“A politização da vida constitui o acontecimento decisivo da modernidade”. Assim, o homem dito autônomo, o homem sacralizado e sagrado dos tempos modernos, pode vir a ser como o Homo sacer do antigo direito romano, um indivíduo não sacrificável – pois isso significaria que ele ainda é parte da espécie humana –, mas sim um indivíduo passível de ser morto sem sanção. O Estado total (ou totalitário), que coloca em prática essa biopolítica, funciona sob o modo da exceção que se torna a regra (o que leva C. Schmitt, teórico do Estado total, a dizer: “a fonte da lei é a palavra do Führer” – quanto aos stalinistas e aos maoístas, sabemos que ambos tinham sempre razão).

O homem pode ser assim rebaixado à condição de sub-homem. Vê-se, então, que o homem levado em consideração enquanto homem (e não enquanto o que ele era antes: camponês, artesão, comerciante, etc.) pode ser totalmente sujeitado. Retire-se dele a cidadania, e ele não é mais um homem; rebaixe-o à condição de animal, e ele não é mais um homem. E

tornado igual a todos, ele pode tornar-se um idêntico, um clone, e pode ser substituído por um outro idêntico (a racionalidade instrumental, que considera cada um apenas um objeto, reforça essa tendência). Quanto aos dominantes, cresce a tentação de serem paranóicos, perversos ativos e perversos apáticos (carrascos que se habituam a tudo). É certo que não estamos mais nos tempos do Estado total ou totalitário. A democracia representativa triunfou. Mas, de fato, como vimos, é a regra do dinheiro

que adveio. O que torna o sujeito menos dominado pelo Estado (exceto nas ditaduras) é substituído pela sua sujeição ao dinheiro. Os indivíduos tornam-se meros consumidores ou “mercenários”. O cinismo se desenvolve. Os políticos parecem cada vez menos críveis, pois um bom número deles se deixa corromper.4 Um novo “mal-estar” está em vias de aparecer.

C - OS RETORNOS IDENTITÁRIOS

Contra todas as formas de violência (do dinheiro, do Estado), contra esses “monstros frios” (na expressão de Nietzsche), o que é possível instaurar para se recriar um mundo caloroso, agradável, e viver, no qual cada um possa ser reconhecido? Dois tipos de reações podem ser aventados.

Uma reação no nível coletivo Muitas pessoas tentam reencontrar suas raízes. O tema “enraizamento”, caro a Simone Weil, retoma o seu vigor. Ele se traduz por um interesse, e às vezes por uma idealização, do regional, do local, do grupo a que se pertence. Retorno a terra, às músicas e à linguagem local. Na França, percebe-se a importância dada pelos bretões e pelos corsos à utilização da língua deles, à promoção de seu reduto e à sua música popular; retorno a alguns costumes, modos e danças de antigamente. Trata-se de reencontrar um convívio, o prazer de estar junto, de conversar longamente, de afirmar sua diferença cultural, assim como os afro-americanos e os afro-brasileiros podem reconquistar uma dignidade que perderam. Trata-se de uma reação normal e sã que tem por objetivo restaurar um mundo passível de ser vivido entre irmãos e irmãs. Entretanto, essa reação envolve perigo, pois engendra perigos essenciais, tais como o retorno aos nacionalismos mais virulentos, por exemplo, o nacionalismo albanês ou sérvio, para não falar dos nacionalismos da África negra, que se traduzem pela eliminação e pelo massacre (Ruanda) de populações inteiras; a renovação dos integrismos religiosos, a proliferação de seitas, de comunidades fechadas (dos guetos), gangues de bairro etc.; enfim, um “espírito de corpo” pervertido.

Se é importante respeitar as diversas culturas, como Lévy-Strauss sublinhou em Race et histoire, no qual demonstrou que nenhuma cultura pode se orgulhar de superioridade em todos os domínios sobre outra, é essencial também que os povos não se refugiem em comunidades que se querem estáticas. O comunitarismo afasta os homens uns dos outros, e pode fazer renascer aquilo que Freud (1930) chamou de o “narcisismo das pequenas diferenças” e que G. Devereux (1972) julga em termos severos: “Se a gente é apenas um capitalista ou um proletário, um ateniense ou um espartano, a gente está bem perto de não ser grande coisa ou mesmo coisa alguma”. Uma reação no nível individual. Vêem-se cada vez mais pessoas que se voltam à sua própria identidade, que cuidam apenas de “si”, de sua vida privada, de seus investimentos cotidianos, de sua família. O homem, então, não se sente mais fazendo parte de uma espécie humana e não participa mais do trabalho da civilização. Considera os outros apenas obstáculos ou objetos de prazer.

Ademais, à força de ser só e responsável, o homem acabou por considerar seu eu “como um fardo”, conforme observado por R. Sennett (1974). Ele está cansado de si mesmo (A. Ehrenberg, 1998) e se torna desamparado e deprimido, motivos para recorrer às drogas para manter-se de pé e ter o sentimento de ser criativo. O estresse permanente que assalta os atores sociais lhes impede de serem criativos (desenvolvimento do conformismo), e eles acabam por mergulhar na mediocridade, na “insignificância” (Castoriadis, 1996), sinais incontestes da barbárie e de uma incapacidade para a transgressão.

Se se reconhecer como sujeito é essencial, ver-se apenas como um individuo indiferente aos outros e ocupado apenas com suas próprias preocupações é simplesmente mortífero.

Existe uma saída? Pode-se reconstituir o vínculo social?

Scott Fitzgerald dizia: “É preciso saber que o mundo é sem esperança e, contudo, decidir mudálo”.

Eu gostaria de retomar igualmente um verso do poeta alemão Hölderlin, do qual gosto muito: “Lá onde crescem os perigos, cresce também a salvação”.

Atualmente as pessoas são cada vez mais capazes de fazer o diagnóstico que acabo de apresentar. Podemos assinalar os sinais positivos: a família se reconstrói, mesmo que o faça com mudanças. Não se proclama mais a morte da família, como em 1968. Ela é, apesar de tudo, um lugar de calor e de intimidade. Surgem numerosas associações (os “restos du coeur”,*** as ações contra o desemprego, direito à habitação, as redes SOS de amizade, etc.). Os grandes discursos ideológicos desapareceram. Fracassaram porque se tornaram mortíferos.

Mas esse desaparecimento não impediu, apesar de tudo, a aparição, há alguns anos, de movimentos sociais engajados, nos quais os objetivos não são sempre precisos, mas que questionam a sociedade atual. É certo que não é possível dizer precisamente quais serão as conseqüências de suas ações. Isso não impede que esses movimentos existam e que já se façam ouvir. Progressivamente, as pessoas se põem a dizer que não querem mais um Estado totalitário e que tampouco querem um Estado liberal que não se preocupe mais com a proteção social. Querem um Estado de outro tipo, que exponha os problemas em sua nudez, tentando resolver as questões urgentes, consultando as populações e levando em conta suas opiniões, e não seja um Estado estritamente gestor. Existe, pois, uma demanda pela formulação de novos ideais que não são grandiosos, mas que também não são puramente ideais de gestão. Ademais, como se sabe que não se pode pedir tudo ao Estado, vêem-se ações assumidas cada vez mais por grupos e associações (anti-racistas, auxílio aos clandestinos, de socorro aos carentes, etc.).

Estamos assistindo a uma lenta mas real renovação da sociedade civil. Esse é um ponto extremamente importante. Não se pode pedir tudo ao Estado, então é preciso pôr as mãos na massa, tanto individual quanto coletivamente. O indivíduo não deve se perder no coletivo, deve manifestar

plenamente sua individualidade e ao mesmo tempo trabalhar com os outros para construir alguma coisa. Nada pode ser feito sem envolvimento individual forte nas ações políticas, que são pensadas, discutidas. E as pessoas começam a crer. Um outro ponto que me parece muito importante é a renovação da noção de ética. Falou-se muito de ética nos negócios. Não creio nela, e ela é perigosa, pois se trata mais de uma deontologia do que de ética, mais uma prescrição do que propriamente princípios reguladores. Mas a preocupação ética torna-se importante em todos os lugares, não somente nos comitês de bioética ou na vida das empresas, mas na vida de cada um de nós. Atualmente nos recolocamos algumas questões fundamentais que eram ocultadas.

Eu gostaria de citar algumas delas, em particular as questões enunciadas por Max Weber: o que é a ética da convicção ou a ética da responsabilidade? Até que ponto podemos ter convicções sólidas e discutir fortemente a partir do que pensamos, e ao mesmo tempo nos sentir responsáveis pelas conseqüências de nossas ações? Podemos também nos interrogar sobre o fato de que, mesmo que tenhamos convicções estabelecidas, elas não são necessariamente justas, e que, pois, é preciso colocálas à prova da comunicação e da discussão. É por isso que parece muito importante que se desenvolva o que Habermas chamou de ética da discussão (1983). O importante é que as pessoas tenham o máximo

possível de informações, e que possam discutir no espaço público para permitir que os problemas sejam verdadeiramente tratados. Estamos longe disso. A informação que temos não é nem total nem pertinente. Porém, a demanda por informação aumenta.

O indivíduo começa a perceber que não é apenas à base de estimulantes que ele pode encontrar saídas, que não é somente adotando todas as próteses possíveis que ele pode se adaptar, mas que é principalmente se interrogando sobre as suas capacidades, seus limites, sua mortalidade, individualmente e com os demais. O indivíduo então se confessa capaz de um trabalho de luto, de um trabalho de interrogação, que pode levá- lo a analisar-se, a trabalhar o seu “fórum interior”, não para fazer análise pela análise, mas para tentar saber por que faz tal coisa e que sentido lhe atribui. É dizer que retorna de maneira fundamental a algo que estava em vias de desaparecer: a questão do sentido. Os seres humanos são seres em busca de sentido. É a definição fundamental de ser humano e ser social. De outro modo, seríamos apenas animais totalmente programados.

Os sujeitos se dão cada vez mais conta da identidade dos problemas com os quais se defrontam. São capazes de começar a se interrogar. É necessário que haja pessoas que possam ajudá- los a analisar o que estão fazendo, a fim de que possam pensar novos projetos, construir novas instituições, transgredir as regras que não valem nada e guardar aquelas que valem algo, retomar o que haviam esquecido, fazer experimentação social e, talvez, um dia formar um novo paradigma social e humano.

Esse paradigma implicaria ter-se maior consideração pelos outros. Atualmente nos perguntamos: “Em que consiste a dignidade do ser humano? O que é o respeitar o ser humano?” Existe um esforço nesse sentido. A renovação da ética, a emergência de um desejo de reencontrar a alegria em trabalhar e em viver junto, o desejo de amizade, de convívio pode reconstruir o tecido social (Freud viu isso): é o amor mútuo (a libido associativa), que está no fundamento do vínculo social, e não somente a morte mútua. É graças a ele que se pode vislumbrar o “enfraquecimento do Estado”.

Existem em nossas sociedades muitas mortes, mortes físicas, mortes psíquicas, mas é o amor – seja como amor total, seja como ternura, amizade, camaradagem, solidariedade, fraternidade – que deve nos animar. É preciso pensar não apenas na liberdade e na igualdade. A fraternidade é também alguma coisa de essencial. É a percepção real de que as sociedades não podem se fundar nem perdurar se não desenvolvem um mínimo de prazer, até o regozijo de estar junto. Eu diria que é preciso reinstaurar o que Freud dizia: é preciso, mesmo assim (e é muito difícil), poder seguir o programa do princípio do prazer. E, naturalmente, a realidade é sempre contra. Mas o programa do princípio do prazer é, levando em conta a realidade, tentar se reconhecer mutuamente, fazer as coisas junto, e me parece que as pessoas mais mortíferas, sempre mais numerosas, já começam a desencantar um pouco.

O vínculo social não se construirá a não ser que queiramos construí-lo, e se esse desejo for compartilhado por um grande numero de pessoas. O voluntarismo, naturalmente, não é suficiente, mas sem ele nada é possível. A revolução não pode ser feita em um dia, mas se faz todos os dias nas relações cotidianas que mantemos, como já pensava W. Reich. E aí está a entrada para um convívio verdadeiro, a edificação de uma democracia que mereça esse nome, na qual o amor e a alegria estejam e continuem a estar presentes. Resta, pois, trabalhar nesse projeto, tentando afastar as tendências mortíferas (sempre reconhecendo-as, pois a pulsão de morte é sempre operante), e fazer triunfar, tanto quanto possível, o prazer e o amor mútuo. Isso pode parecer utópico, mas como eu já disse tempos atrás: “As sociedades que não sonham são sociedades que morrem”. Certamente a divisão originária não cessará, e é importante que permaneça para lançar os movimentos sociais, instituir os desejos. Caso contrário, há o risco de recriar as sociedades “holistas”, fusionais, sem conflitos e sem contradições. De qualquer forma, é preciso lembrar do conselho de Maquiavel: “E muitas se imaginaram repúblicas e monarquias que nunca foram vistas nem conhecidas como verdadeiras. Com efeito, o que vivemos se distancia tanto do que deveríamos viver que aquele que abandona o que está fazendo para dedicar-se ao que deveria fazer acaba mais por se destruir do que se preservar”.

Os profetas se enganaram: não há o fim da historia, não há sociedades felizes nem futuro radioso. Aqueles que acreditaram nisso destruíram os homens e as sociedades em que viveram. E, no entanto, nem por isso é preciso renunciar à visão de sociedades mais justas, menos alienantes, nas quais os homens seriam mais inclinados à sublimação que à idealização ou ao recolhimento em si mesmos.

Se, como pensava Castoriadis (1997), “falar já é sublimar”, estamos prontos para dar vida ao aforismo de Nietzsche: “É uma bela loucura, falar – com isso, o homem dança sobre e acima de todas as coisas”, e poderemos, ao aceitar a divisão originária no social e no individual (o inconsciente e o consciente permanecem clivados), encontrar aquilo que Nietzsche chamou de caos; ou seja, favorecer a criação de uma sociedade que “dança” e não a de uma sociedade que “pesa”.

Por: Eugène Enriquez, Université Paris VII

Fonte: Internet, doc pdf

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Hallelujah...

Consumo solidário e responsável!...

                                                           Imagem Guadalupe, BING
O consumismo que a cultura do capital gestou está na base da fome de bilhões de pessoas e da atual falta de alimentos da humanidade. Face a tal situação como deveria ser o consumo humano?

Em primeiro lugar o consumo deve ser adequado à natureza do ser humano. Esta, por um lado, é material, enraizada na natureza e precisamos de bens materiais para subsistir. Por outro lado, é espiritual que se alimenta com bens intangíveis como a solidariedade, o amor, a acolhida e a abertura ao Infinito. Se estas duas dimensões não forem atendidas nos tornaremos anêmicos no corpo e no espírito. Em segundo lugar, o consumo precisa ser justo e equitativo. A Declaração dos Direitos Humanos afirma que a alimentação é uma necessidade vital e por isso um direito fundamental de cada pessoa humana (justiça) e conforme as singularidades de cada um (equidade). Não atendido este direito, a pessoa se confronta diretamente com a morte.

Em terceiro lugar, o consumo deve ser solidário. É solidário aquele consumo que supera o individualismo e se auto-limita por causa do amor e da compaixão para com aqueles que não podem consumir o necessário. A solidariedade se expressa pela partilha, pela participação e pelo apoio aos movimentos que buscam os meios de vida, como terra, moradia e saúde. Implica também a disposição de sofrer e de correr riscos que tal solidariedade comporta.

Em quarto lugar, o consumo há de ser responsável. É responsável o consumidor que se dá conta das conseqüências do padrão de consumo que pratica, se suficiente e decente ou sofisticado e suntuoso. Consome o que precisa ou desperdiça aquilo que vai faltar na mesa dos outros. A responsabilidade se traduz por um estilo sóbrio, capaz de renunciar não por ascetismo mas por amor e em solidariedade para com os que sofrem necessidades. Trata-se de uma opção pela simplicidade voluntária e por um padrão conscientemente contido, que não se submete aos reclamos do desejo nem às solicitações da propaganda. Mesmo que não tenha conseqüências imediatas e visíveis, esta atitude vale por ela mesma. Mostra uma convicção que não se mede pelos efeitos esperados, mas pelo valor que esta atitude humana possui em si mesma.

Por fim, o consumo deve ser realizador da integralidade do ser humano. Este tem necessidade de conhecimento e então consumimos os muitos saberes com o discernimento sobre qual deles convém e edifica. Temos necessidade de comunicação e de relacionamentos e satisfazemos esta necessidade alimentando relações pessoais e sociais que nos permitem dar e receber e nesta troca nos complementamos e crescermos. Às vezes esta comunicação se realiza participando de manifestações em favor da justiça, da reforma agrária, do cuidado pela água potável, da preservação da natureza, ou também vendo um filme, assistindo a um concerto, indo a um teatro, visitando uma exposição artística, participando de algum debate.

Temos necessidade de amar e de sermos amados. Satisfazemos esta necessidade amando com gratuidade as pessoas e os diferentes de nós. Temos necessidade de transcendência, de ousarmos e de estarmos para além de qualquer limite imposto, de mergulharmos em Deus com quem podemos comungar. Todas estas formas de consumo realizam a existência humana em suas múltiplas dimensões.

Estas formas de consumo não custam e não gastam energia, pressupõem apenas o empenho e a abertura para a solidariedade, para a compaixão e para a beleza. Tudo isso não traduz aquilo que pensamos quando falamos em felicidade?

*Leonardo Boff é teólogo, escritor, professor emérito de ética da UERJ e membro da Comissão da Carta da Terra.

Fonte: Envolverde/O autor

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