sábado, 17 de outubro de 2009

Se Tu Amas não Renúncia!



        A moral é de fato uma lógica: ou é isto ou aquilo; se escolho isto, então, não escolho aquilo de novo, isto ou aquilo: e assim por diante, até que, dessa cascata de alternativas, surja enfim um ato puro - puro de todo arrependimento, de todo tremor. Amas! Ou tens alguma esperança, e então ages; ou não tens nenhuma, e então renuncias. Tal é o discurso do sujeito 'sadio': ou, ou. Mas o sujeito amoroso responde: tento me esgueirar entre os dois membros da alternativa: quer dizer: não tenho nenhuma esperança, mas mesmo assim... Ou ainda: escolho obstinadamente não escolher; escolho a deriva: continuo...
          Minhas angústias de conduta são fúteis, cada vez mais fúteis, ao infinito. Se o outro, incidentalmente ou negligentemente, me dá o número do telefone de um lugar onde posso encontrá-lo a tais horas, me desespero imediatamente: devo ou não devo telefonar? (De nada serviria alguém me dizer que posso telefonar para ele - sentido objetivo, razoável, da mensagem -, pois é precisamente com esta permissão que não sei o que fazer.)
                       É fútil o que aparentemente não tem, não terá conseqüência. Mas, para mim, sujeito amoroso, tudo o que é novo, tudo o que desarranja, é recebido, não sob a forma de um fato, mas sob a forma de um signo que é preciso interpretar. Do ponto de vista amoroso, o fato torna-se conseqüente porque se transforma imediatamente em signo: é o signo, não o fato, que é conseqüente (por seu ressoar). Se o outro me deu esse novo número de telefone, de que isso era signo? Seria um convite para usá-lo imediatamente, por prazer, ou apenas se fosse o caso, por necessidade? Minha resposta será ela própria um signo, que o outro interpretará fatalmente, desencadeando assim, entre ele e eu, uma tumultuosa contradança de imagens. Tudo significa: com esta proposição, prendo-me, enleio-me no cálculo, impeço-me de gozar.
                           Às vezes, à força de deliberar sobre 'nada' (no dizer do mundo), esgoto-me; tento então, num sobressalto, voltar, tal como uma afogada que bate com o calcanhar no solo marinho, a uma decisão espontânea (a espontaneidade: grande sonho, paraíso, poder, gozo): pois bem, telefone para ele, já que você está com vontade! Mas o recurso é vão: o tempo amoroso não permite alinhar o impulso e o ato, fazê-los coincidir: não sou a mulher dos pequenos 'acting-out'; minha loucura é temperada, não é visível; é imediatamente que tenho medo das conseqüências, de qualquer conseqüência: é meu medo - minha deliberação - que é 'espontâneo'.
                         O karma é o encadeamento (desastroso) das ações (de suas causas e de seus efeitos). O budista quer se retirar do karma; quer suspender o jogo da causalidade; quer ausentar os signos, ignorar a questão prática: o que fazer? Eu, eu não cesso de me colocá-lo e suspiro por esta suspensão do karma que é o nirvana.
                           Do mesmo modo, as situações que, por sorte, não me impõem nenhuma responsabilidade de conduta, por mais dolorosas que sejam, são recebidas com uma espécie de paz; sofro, mas pelo menos nada tenho que decidir; a máquina amorosa (imaginário) move-se aqui por si só, sem mim; como um operário da era eletrônica, ou como o estúpido do fundo da classe, basta-me estar ali: o karma (a máquina, a aula) rumoreja diante de mim, mas sem mim. Na própria infelicidade, posso, por um brevíssimo momento, arrumar para mim um pequeno recanto de preguiça."

Barthes, Roland. Fragmento de um discurso amoroso. Editora Francisco Alves, 12º edição. Rio de Janeiro, 1994.