sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Mais uma Política para a Amizade - Francisco Ortega


                         Temos criado uma sociedade que incita à fala, especialmente à fala sobre o sexo, arcano de nossa identidade e intimidade, e que vive nos últimos três séculos “uma explosão discursiva em torno ao sexo”. Somos capazes de pagar a determinados indivíduos para ouvirem-nos falar de nós mesmos, uma atividade tão lucrativa que leva alguns a “alugar suas orelhas.” É preciso buscar ilhas de silêncio no meio do oceano comunicativo, possibilidades de cultivar o silêncio como uma forma da sociabilidade, o refúgio de um simples não ter nada a dizer.
                      O preço que pagamos pela psicologização total da realidade social é muito alto: a perda da “civilidade”, que se exprime na capacidade criativa que todos os indivíduos possuem, sua condição de homo ludens, a qual precisa da distância para poder se realizar. Em sociedades com uma intensa vida pública, como acontecia na sociedade do Antigo Regime, o teatro e a rua mostram diversas semelhanças.
                      Atuar, jogar e agir exigem a existência de convenções, de artifícios e de teatralidade. São sociedades que valorizam a distância, a impessoalidade, a aparência, a civilidade, a urbanidade, a polidez, a máscara, a teatralidade, o jogo, a ação, a imaginação e a duplicidade, ao invés da autenticidade, da intimidade, da sinceridade, da transparência, da unicidade, da personalidade, e da efusão do sentimento caraterístico das sociedades cuja vida pública foi erodida.
                        A teatralidade e a intimidade se opõem. Apenas sociedades com uma forte vida pública podem valorizar o jogo, a imaginação, a ação e a teatralidade. A procura de autenticidade psicológica torna os indivíduos inartísticos. A sociedade “íntima” rouba aos homens sua espontaneidade, sua faculdade de agir, enquanto começo de algo novo, sua vontade de ultrapassar limites e interromper processos automáticos, de inaugurar e de experimentar. Essa capacidade política do ser humano precisa da distância, da diferença e da pluralidade, que a psicologização da sociedade anula.
                       Vivemos em uma sociedade que nos incita continuamente a “desnudar-nos” emocionalmente, que fomenta todo tipo de terapias, verdadeiras dramaturgias da intimidade. A conseqüência é a descomposição da “civilidade”, entendida como o movimento aparentemente contraditório de se proteger do outro e ao mesmo tempo usufruir de sua companhia. Uma forma de tratar os outros como estranhos, pois usar uma máscara, cultivar a aparência, constitui a essência da civilidade, como modo de fugir da identidade, e de criar um vínculo social baseado na distância entre os homens que não aspira ser superada.
                        O comportamento civilizado, polido, exige um grande controle de si, já que não é coisa fácil conter-se e governar-se a ponto de não deixar transparecer nos gestos e na fisionomia as mais violentas emoções de sua alma. Essa faculdade de uma sociabilidade sadia e criativa, perde-se na sociedade “íntima”. A civilidade torna-se incivilidade, ou seja, essa habilidade tão difundida de incomodar o outro com o próprio eu, de lhe impor minha intimidade.
                       A incivilidade teria como conseqüências os comportamentos egoístas e narcisistas e o esquecimento do outro, bem como o desinteresse na vida pública que caracterizam nossa sociedade, o refúgio no privado e na interioridade à procura de uma autenticidade, uma natureza original perdida “antes que a arte tenha moldado nossas maneiras”, como se lamentava Rousseau, o mais impolido dos filósofos. O que torna nossa sociedade tão caótica é “O mundo de hoje muito inutilmente cruel. Crueldade é violar a personalidade de alguém, é colocá-lo em uma condição tal que chegue a uma confissão total e gratuita. Se fosse uma confissão visando um fim determinado eu o aceitaria, mas é o exercício de um voyeur, de um torpe, reconheçamos, é cruel. Acredito firmemente que a crueldade é sempre uma manifestação de infantilismo...