terça-feira, 28 de agosto de 2012

El Gran Silencio...


 
..."Quando se aquietam os lábios,  mil línguas ferem o coração"... Rûmî

 Não há como escapar de um grande deleite estético e espiritual ao se defrontar com o excelente filme de Philip Gröning, “O grande silêncio” (Die Große Stille – 2005) . Trata-se de uma obra singular, de grande sedução cinematográfica, que foge aos padrões usuais e possibilita a recuperação do significado de um tempo que revela “efeitos especiais interiores”. A idéia da filmagem nasceu em 1984, quando o diretor entrou em contato com os responsáveis da Grande Chartreuse, nos alpes franceses, ao norte de Grenoble, a casa mãe da ordem dos cartuchos, fundada por são Bruno de Colônia (1030-1101), em 1084 (séc. XI). 

 A resposta à solicitação de filmagem só veio em 1999, ou seja, 15 anos depois da solicitação feita. As condições para a sua realização estavam bem definidas: o diretor deveria permanecer hospedado no eremitério francês, conviver com a comunidade, sem poder fazer recurso a nenhuma iluminação artificial e sem poder contar com técnicos de apoio. O trabalho foi realizado pessoalmente por ele, durante os seis meses em que viveu, como os monges, numa das celas da comunidade. O cineasta recorda que foram tempos difíceis para ele, sobretudo no início, de adaptação à vida de solidão e à alimentação natural. Foram cerca de 300 horas de filmagem, que resultaram num filme de 160 minutos. Relata-se de forma muito rica e fidedigna a vida contemplativa, o ritmo, a repetição e o tempo do “silêncio eloqüente” que marca o cotidiano de 37 monges cartuxos que dedicam sua vida à experiência de amor a Deus. 

A técnica cinematográfica é inovadora. O diretor recorreu a uma tecnologia de última geração. Toda a filmagem é feita em alta definição, possibilitando uma percepção singular da vida contemplativa em nuances inusitadas. É um “filme de autor”, marcado por grande liberdade, que rompe os rótulos e os efeitos das grandes produções em curso. É um filme pontuado pela lógica da paciência, cujo ritmo é leve, pacato, lento. Há um respeito profundo pela temporalidade dos monges. A câmera cinematográfica não invade a privacidade dos eremitas, mas é acolhida com carinho, já que consegue sintonizar-se com a dinâmica vital de cada participante.

 O tempo é o grande protagonista deste belo filme, mas percebido no ritmo dos monges. A opção do diretor é deixar falar o silêncio que habita a Grande Chartreuse, e falar por si mesmo. São densas e longas as tomadas que captam cada detalhe da vida cotidiana dos monges: a expressão dos rostos, o rumor dos passos nos grandes corredores,  o vigor da noite em sua “solidão sonora”, o barulho da chuva, a madeira que queima e estala na estufa, os detalhes das frutas na bandeja, do copo com água sobre a mesa, da bacia que balança, da pá que remove a neve; e também a presença dos animais com seus guizos, o balanço da neve, o canto gregoriano e o ritmo dos sinos. 

E como são belos os toques dos sinos neste filme! E nada é feito com pressa. É como se o diretor buscasse provocar no espectador interrogações substantivas sob a forma como a vida vem sendo levada em nosso tempo, onde a gratuidade escapa por todos os poros. Há uma intenção de expressar não apenas os rumores do silêncio, mas também de educar o olhar para a percepção dos pequenos sinais, dos detalhes que sempre escapam daqueles que vivem sob o domínio da pressa e da busca de êxito. Os detalhes são inúmeros e ricos: o trabalho na cozinha e na cela, o ritmo da alimentação tranqüila, o recolhimento em oração, o monge que alimenta o gato, a alegria e gratuidade na descida sobre a neve. 

As imagens da natureza também são esplêndidas, como a das árvores que dançam sob o ritmo do vento e do lindo céu que abraça e protege a paisagem. Nada escapa ao olhar atento do diretor, que como um antropólogo do espírito, desvenda paisagens inusitadas e provoca uma sedução que estava adormecida. Como sublinha Olegário González de Cardedal, em belo artigo sobre o filme publicado em fevereiro de 2002 (IHU Online), “o espectador vai percebendo lentamente que o pano de fundo do filme é justamente o que não se vê e é isso que o alimenta. A sucessão de cenas, rostos, ruídos, cantos e neve é o acorde de uma presença interior que lhe dá conteúdo. O filme é o relato da presença silenciosa e sonora de Deus na vida de alguns homens para quem Ele é tudo, mas que não interfere em nada, de forma que tudo discorre na luz de seu rosto”.