..."Quando se aquietam os lábios,  mil línguas ferem o coração"... Rûmî
 Não há como escapar de um grande deleite estético e 
espiritual ao se defrontar com o excelente filme de Philip Gröning, “O 
grande silêncio” (Die Große Stille – 2005) . Trata-se de uma obra 
singular, de grande sedução cinematográfica, que foge aos padrões usuais
 e possibilita a recuperação do significado de um tempo que revela 
“efeitos especiais interiores”. A idéia da filmagem nasceu em 1984, 
quando o diretor entrou em contato com os responsáveis da Grande 
Chartreuse, nos alpes franceses, ao norte de Grenoble, a casa mãe da 
ordem dos cartuchos, fundada por são Bruno de Colônia (1030-1101), em 
1084 (séc. XI). 
 A resposta à solicitação de filmagem só veio em 1999, 
ou seja, 15 anos depois da solicitação feita. As condições para a sua 
realização estavam bem definidas: o diretor deveria permanecer hospedado
 no eremitério francês, conviver com a comunidade, sem poder fazer 
recurso a nenhuma iluminação artificial e sem poder contar com técnicos 
de apoio. O trabalho foi realizado pessoalmente por ele, durante os seis
 meses em que viveu, como os monges, numa das celas da comunidade. O 
cineasta recorda que foram tempos difíceis para ele, sobretudo no 
início, de adaptação à vida de solidão e à alimentação natural. Foram 
cerca de 300 horas de filmagem, que resultaram num filme de 160 minutos.
 Relata-se de forma muito rica e fidedigna a vida contemplativa, o 
ritmo, a repetição e o tempo do “silêncio eloqüente” que marca o 
cotidiano de 37 monges cartuxos que dedicam sua vida à experiência de 
amor a Deus. 
A técnica cinematográfica é inovadora. O diretor recorreu a
 uma tecnologia de última geração. Toda a filmagem é feita em alta 
definição, possibilitando uma percepção singular da vida contemplativa 
em nuances inusitadas. É um “filme de autor”, marcado por grande 
liberdade, que rompe os rótulos e os efeitos das grandes produções em 
curso. É um filme pontuado pela lógica da paciência, cujo ritmo é leve, 
pacato, lento. Há um respeito profundo pela temporalidade dos monges. A 
câmera cinematográfica não invade a privacidade dos eremitas, mas é 
acolhida com carinho, já que consegue sintonizar-se com a dinâmica vital
 de cada participante.
O tempo é o grande protagonista deste belo filme, mas percebido no ritmo dos monges. A opção do diretor é deixar falar o silêncio que habita a Grande Chartreuse, e falar por si mesmo. São densas e longas as tomadas que captam cada detalhe da vida cotidiana dos monges: a expressão dos rostos, o rumor dos passos nos grandes corredores, o vigor da noite em sua “solidão sonora”, o barulho da chuva, a madeira que queima e estala na estufa, os detalhes das frutas na bandeja, do copo com água sobre a mesa, da bacia que balança, da pá que remove a neve; e também a presença dos animais com seus guizos, o balanço da neve, o canto gregoriano e o ritmo dos sinos.
E como são 
belos os toques dos sinos neste filme! E nada é feito com pressa. É como
 se o diretor buscasse provocar no espectador interrogações substantivas
 sob a forma como a vida vem sendo levada em nosso tempo, onde a 
gratuidade escapa por todos os poros. Há uma intenção de expressar não 
apenas os rumores do silêncio, mas também de educar o olhar para a 
percepção dos pequenos sinais, dos detalhes que sempre escapam daqueles 
que vivem sob o domínio da pressa e da busca de êxito. Os detalhes são 
inúmeros e ricos: o trabalho na cozinha e na cela, o ritmo da 
alimentação tranqüila, o recolhimento em oração, o monge que alimenta o 
gato, a alegria e gratuidade na descida sobre a neve. 
As imagens da 
natureza também são esplêndidas, como a das árvores que dançam sob o 
ritmo do vento e do lindo céu que abraça e protege a paisagem. Nada 
escapa ao olhar atento do diretor, que como um antropólogo do espírito, 
desvenda paisagens inusitadas e provoca uma sedução que estava 
adormecida. Como sublinha Olegário González de Cardedal, em belo artigo 
sobre o filme publicado em fevereiro de 2002 (IHU Online), “o espectador
 vai percebendo lentamente que o pano de fundo do filme é justamente o 
que não se vê e é isso que o alimenta. A sucessão de cenas, rostos, 
ruídos, cantos e neve é o acorde de uma presença interior que lhe dá 
conteúdo. O filme é o relato da presença silenciosa e sonora de Deus na 
vida de alguns homens para quem Ele é tudo, mas que não interfere em 
nada, de forma que tudo discorre na luz de seu rosto”.