terça-feira, 15 de março de 2011

Hermenêutica e Reveleação...

                                         Imagem Bing
Poucos cristãos param para pensar de onde vem o material utilizado como fonte para as traduções das Bíblias modernas. Alguém mais atento poderá fazer as seguintes perguntas: Há manuscritos originais escritos de próprio punho por Isaías, Oséias, Paulo ou João? Se não, que material dispomos, onde se encontram e quando foram escritos? Todos os manuscritos de um mesmo livro são iguais ou apresentam divergências? Se há divergências, qual deles se aproxima mais dos originais? Por último: quem definiu os livros que deveriam ou não ser considerados inspirados e que critério utilizou?

É de suma importância para todo aquele que se debruça sobre as Escrituras, levando em conta seu conteúdo sagrado e relevante para os dias atuais, conhecer, ainda que de maneira sucinta, a história da transmissão do texto bíblico. Depois de acurada análise, esse leitor curioso e inquieto a respeito das coisas divinas, certamente será levado uma profunda reflexão a respeito do significado da palavra “revelação”. No texto sagrado palavra humana e palavra divina se confundem como fogo e rocha ardente expelidos das entranhas da terra. Separá-las não é tarefa fácil. Eis o desafio da hermenêutica.

Breve história do texto do Antigo Testamento

Há entre os especialistas um relativo consenso de que os primeiros registros por escrito do Antigo Testamento ocorreram por volta do ano 1000 a.C., na época da monarquia davídica. Nessa época as tradições orais relativas aos patriarcas, ao êxodo e a tantos eventos ligados à fé e à história dos hebreus começavam a ser documentados por escrito. O material mais comum para a escrita empregado na época era o papiro.

Os registros mais antigos de textos do Antigo Testamento em hebraico foram encontrados entre os anos de 1947 e 1956 em algumas grutas em Qumran, às margens do Mar Morto. Datados em geral de 100 a.C. - 100 d.C. esses documentos (pergaminho, papiro ou cobre) ficaram conhecidos como Manuscritos do Mar Morto (MMM). De todos os livros que compõem a Bíblia hebraica, apenas os livros de Neemias e Ester não foram encontrados em Qumran.

Antes da descoberta dos manuscritos do Mar Morto os documentos mais antigos disponíveis do Antigo Testamento eram códices do final do primeiro milênio. Ao invés de costuradas e enroladas em carretéis como os pergaminhos, nos códices as folhas eram dispostas como num livro moderno. Alguns dos mais importantes códices em hebraico são os seguintes:

O Códice do Cairo dos Profetas C: É o manuscrito massorético mais antigo conhecido pelos eruditos. Foi escrito em Tiberíades e contém os Profetas Anteriores (de Josué a Reis) e Posteriores (de Isaías a Malaquias). Foi escrito por volta de 895 por Moisés ben Asher.

O Códice Or 4445 B: Também é conhecido como Códice Britânico e encontra-se atualmente no Museu Britânico de Londres. Abrange o Pentateuco com omissões. Foi escrito entre 925/930, talvez por Moisés ben Asher.

O Códice de Alepo A (ou Codex Alepensis): Também conhecido como Códex aleph. Originalmente continha todo o texto do Antigo Testamento, mas um incêndio criminoso feito na sinagoga de Alepo em 1947 lhe causou danos irreparáveis. Foi escrito em Jerusalém por volta de 925/930 por Shelomoh ben Buya'a. Encontra-se atualmente na Biblioteca do Instituto Ben-Zvi, em Jerusalém.

O Códice de Leningrado B19a (L): Foi escrito por volta do ano 1000 d.C. por Shemuel ben Yaakov no Cairo, Egito. Encontra-se atualmente na Biblioteca de São Petesburgo (antiga Leningrado). Este é o mais antigo manuscrito completo do Antigo Testamento e é a base da moderna Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS). Uma nova edição do Antigo Testamento hebraico baseada neste códice está prevista para este ano: A Bíblia Hebraica Quinta (BHQ).

Todos os códices acima são conhecidos como Textos Massoréticos, desenvolvidos por um grupo de judeus conhecidos como massoretas (= transmissores e fixadores da tradição textual). Diferenciam-se dos manuscritos encontrados em Qumran por possuírem os sinais vocálicos e notas explicativas acrescidas ao texto.

Versões do Velho Testamento

Após a dramática experiência do exílio (586-537 a.C.), o hebraico como língua falada e escrita pelos judeus foi dando lugar ao aramaico (comunidades da Palestina e Babilônia) e ao grego (comunidades formadas em Alexandria, Egito). Esse deslocamento geográfico dos judeus fez surgir a necessidade de traduções do texto sagrado do hebraico para o aramaico (Targun) e para o grego (Septuaginta). O cisma com judeus que retornaram do exílio fez com que os samaritanos produzissem a sua própria versão do Pentateuco, que ficou conhecida como Pentateuco samaritano. Com o advento do cristianismo surgiu uma tradução para o latim (Vulgata Latina), língua oficial adotada pelo Império Romano. Após a difusão do cristianismo para outras regiões, logo surgiram versões em siríaco (dialeto do aramaico oriental falado por cristãos da Síria), copta (falado no Egito), o etiópico (falado na Etiópia), eslavo e árabe. Tais versões são extremamente importantes, uma vez que podemos compará-las com textos escritos em hebraico e determinar variantes. Vejamos com um pouco mais de detalhes cada uma delas:

Os targuns - versão parafraseada em aramaico da Bíblia hebraica. Os mais antigos de que dispomos são da era cristã. Os Targuns mais importantes são os de Onquelos, amigo de Gamaliel e Jonatã Ben Uziel, suposto discípulo de Hilel.

A Septuaginta – Também chamada de Setenta ou simplesmente LXX, foi elaborada por judeus que viviam em Alexandria, no Egito. Um escritor que se quis passar por um gentio chamado Aristeas relata que a tradução da LXX foi realizada por 72 judeus (seis de cada tribo) e completada em 72 dias no ano 285 a.C. Essa história é considerada inautêntica por estudiosos modernos.

O Pentateuco samaritano – Escrito num dialeto da mesma família da língua hebraica e com caracteres do antigo hebraico, o Pentateuco samaritano é um manuscrito medieval preservado pela comunidade samaritana. Ele apresenta cerca de seiscentas variantes em relação ao Texto Massorético. Em Dt 27,4, por exemplo, no lugar do monte Ebal aparece o nome do monte Gerizim.

A Vulgata Latina – É uma tradução do Antigo e Novo Testamento feita para o latim por Jerônimo em 404 d.C. Esta versão se tornou oficial na Igreja católica por mais de mil anos. Substituiu a Antiga Vulgata (conhecida como Vetus Latina), que por sua vez foi substituída pela Nova Vulgata no pontificado de João Paulo II, em 1995.

A Siríaca – Iniciada por volta do século II d.C. a versão siríaca conhecida como Peshitta segue fielmente o texto massorético.

Além das versões listadas acima, há ainda outras versões menos importantes, tais como a etíope (baseia-se na LXX), copta (sec. IV), gótica (também baseada na LXX - 360 d.C.), armênia (séc. V), eslavônica (séc. V) e árabes (séc. VIII ao XII).

Breve história do texto do Novo Testamento

Com relação ao Novo Testamento, as primeiras produções literárias dos discípulos de Jesus foram as cartas de Paulo, na década de 50. Marcos, considerado o primeiro dos evangelhos, parece ter sido escrito durante a guerra judaica (66-70 d.C.), ou seja, cerca de três décadas após a crucificação de Jesus. O mais antigo registro dos Evangelhos é um papiro (conhecido tecnicamente como Papiro P 52) que contém um fragmento do Evangelho de João, datado de 125 d.C. Os livros do Novo Testamento também são citados em escritos produzidos pelos Pais da Igreja. Dentre eles podemos destacar Justino Mártir, Irineu, Clemente de Alexandria e Orígenes.

Além dos fragmentos de papiro e citações antigas feitas pelos primeiros cristãos e seus opositores, os mais importantes códices do Novo Testamento são os seguintes:

O Códice Alef ou Sinaítico: Foi descoberto em 1859 no Convento de Santa Catarina (península do Sinai) por um jovem catedrático da universidade de Leipzig chamado Constantin von Tischendorf. O códice foi datado para o século IV. Contém o Antigo Testamento em grego e todo o Novo Testamento, acrescido das Epístolas de Barnabé e parte do Pastor de Hermas. Encontra-se atualmente no Museu Britânico.

O Códice A ou Alexandrino: Foi oferecido ao rei Carlos 1º da Inglaterra por Cirilo Lucar, Patriarca de Constantinopla, em 1627. Produzido em meados do século V, contém o Velho Testamento grego e o Novo Testamento a partir de Mt 25,6, mas omite partes do Evangelho de João (Jo 6,50 – 8,52) e II Coríntios (4,13 – 12,6). Contém ainda a Primeira Epístola de Clemente de Roma e uma pequena parte da segunda. Este documento também pertence ao Museu Britânico.

O Códice B ou Vaticano: Manteve-se oculto dos estudiosos na Biblioteca Vaticana desde que lá foi colocado pelo Papa Nicolau V (1447-1455). Como o Sinaítico, foi produzido no século IV. Contém o Velho Testamento em grego (com omissões) e o Novo Testamento até Hebreus 9,14. Faltam-lhe as epístolas pastorais (Timóteo e Tito), Filemon e o Apocalipse.

O Códice C ou Ephraimi Syri Recriptus: Trata-se de um palimpsesto (pergaminho reutilizado). O texto original foi recuperado porque a tinta do primeiro copista era de melhor qualidade que a do segundo. Contém fragmentos do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento (com grandes omissões). Encontra-se atualmente na Biblioteca Nacional de Paris.

Todos os manuscritos acima foram escritos em unciais (letras maiúsculas). Existem 101 manuscritos unciais dos Evangelhos, 22 de Atos e Epístolas católicas, 27 de Epístolas paulinas e 6 de Apocalipse. Além dos unciais, há inúmeros manuscritos escritos em “minúsculos”, também chamados de manuscritos cursivos. O número de manuscritos cursivos é bem maior: 1420 dos Evangelhos, 450 do livro de Atos e Epístolas Católicas, 520 de Epístolas Paulinas e 194 do Apocalipse.

Versões do Novo Testamento

Como dito anteriormente, o Novo Testamento ganhou uma versão latina no século IV d.C., fruto do trabalho de Jerônimo. Além da versão de Jerônimo, o Novo Testamento também ganhou algumas versões siríacas (Peshita, Diatessaron e a versão Filoxeno-Harkeliana), uma versão armênia (fim do quarto século) e algumas versões em copta e etíope.

Obras consultadas:

ANGUS, Joseph. História, doutrina e interpretação da Bíblia – vol I. Tradução de J. Santos Figueiredo. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1951.

DRANE, John. Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2009.

FITZMYER, Joseph. 101 perguntas sobre os Manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Loyola, 1997.

GEISLER, Norman L.; NIX, William E. Introdução Bíblica - Como a Bíblia chegou até nós. Tradução de Oswaldo Ramos. São Paulo: Editora Vida, 1987.

MEUNIER, Bernard. O nascimento dos dogmas cristãos. São Paulo: Loyola, 2005.

SICRE, José Luis. Introduccion al Antiguo Testamento. Estella: Verbo Divino, 2000, p.65.

SIMIAN-YOFRE, Horácio. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

SCHNELLE, Udo. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.

VALDÉS, Ariel Álvares. Que sabemos sobre a Bíblia? – Vol II. Tradução de Afonso Paschotte. Aparecida, SP: Santuário, 1997.

VV.AA. Comentário bíblico em três volumes. São Paulo: Loyola, 1999.

VV. AA. Lexicon: dicionário teológico enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003.

Fonte: Numinosum Teologia