sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Tony Judt...

Até ao fim, disse ao mundo o que pensava dele. A doença, terrível, capturou-lhe o corpo e tornou-o uma armadura no combate contra si mesmo. A esclerose lateral amiotrófica deu-lhe todas as paralisias e uma experiência apocalíptica: a de uma invencível forma física de mal. Tony Judt não se escondeu: escreveu sobre o que lhe estava a acontecer e previu o que lhe iria acontecer. Esse depoimento tem uma lucidez no desespero que o universaliza e faz dele o testemunho, ao mesmo tempo inocente e ímpio, de um condenado à morte.

Na vida deste judeu inglês, que "cresceu rodeado de palavras e foi criado com elas", houve a busca de um pensamento sobre os acontecimentos e os homens. A história, feita e refeita, foi-lhe a grande lente com que viu o mundo. O seu livro "Pós-Guerra - Uma História da Europa desde 1945" ficará como clássico de uma história que não teme o confronto com as disputas, as memórias e os fantasmas de um passado que ainda não passou. Judt sabia que a história é incerta e labiríntica como a vida e o mundo de que fala. Escrevia com um estilo feito de minúcia e clareza, mas que não iludia as indeterminações e os enigmas. Lê-lo torna-nos atentos. Esta atenção favorece-nos e é desafio, impugnação, conhecimento. Com ela, reparamos mais e compreendemos melhor, fazendo perguntas às nossas respostas.

De tanto olhar o tempo que corre como a água, Judt não deixou de ver o hoje desse rio de Heraclito em que nos banhamos. Os seus ensaios sobre a atualidade são de uma coragem sem recuo. Judeu e até sionista na sua adolescência, pôs depois em causa a política do Estado de Israel e fez críticas e propostas que lhe foram pagas com a moeda da inimizade e do insulto. Europeu, era agora muito crítico dos caminhos da Europa e dos sinais que os indicam. Inglês a viver em Nova Iorque, em cuja Universidade ensinava, condenou a invasão do Iraque e opôs-se à atitude guerreira e imperial da Administração americana. Historiador, achava que entrámos numa época perigosa de esquecimento da história e de amnésia do mal. Por tudo isto, a sua visão fez-se pessimista, depreciativa e desencantada. Mas, nele, o desencanto não tinha a voz da melancolia ou da desistência: era insolência, provocação e protesto. O seu último livro ("Ill Fares the Land" - "O Mal Ameaça a Terra") defende um regresso à grande tradição da social-democracia (a que pertence o socialismo democrático e o trabalhismo) e do Estado-Providência, aquela que, embora com falhas, melhor aliou os valores da liberdade e da igualdade. É um triste sinal do tempo a que chamamos nosso que tal defesa tenha sido olhada como um radicalismo suspeito. Estes têm sido os anos de um extremismo agressivo, ávido e vertiginoso, que fez do aumento da desigualdade, da desproteção e da exclusão uma virtude. Para o neoliberalismo fundado num determinismo economicista, tecnocrático, gestionário e messiânico, toda a ideia de 'social', mesmo a que se mostrou justa, moderada e eficaz, é tida como desvio ou ameaça. Isto por si prova a necessidade e o merecimento da proposta de Tony Judt. E é uma boa razão para persistirmos nela, dizendo com ele: "A social-democracia não representa um amanhã que canta nem um ontem que cantou. Mas, entre as opções políticas, é melhor do que qualquer outra ao nosso alcance."

De "Pós-Guerra - Uma História da Europa depois de 1945" a "O Século XX Esquecido - Lugares e Memórias", dos artigos sobre Koestler, Hannah Arendt e Camus à crónica a que chamou "Noite", na qual fala da doença e da morte que ela anunciava, estamos com um historiador-ensaísta que fez do mal uma das personagem da sua obra. Ao lê-lo, sinto proximidade. E, quando houve uma ou outra leitura feita na discordância, ou mesmo na discórdia, nunca foi inutilmente que a minha cabeça disse não ao que os meus olhos liam.

A morte de Judt acontece num tempo de todos os perigos para a Europa e para o Ocidente. Como disse recentemente, com um eterno cigarro na mão e uma grande clarividência nonagenária, o antigo chanceler alemão Helmut Schmidt (no seu tempo considerado um social-democrata de direita), para que o desastre no Ocidente seja perfeito só falta que, em 2012, os Estados Unidos juntem aos medíocres que governam a Europa a senhora Sarah Palin, trocando Obama por ela.

Judt era um escritor que gostava de luz e de penumbra. O seu estilo tinha, às vezes, a geometria verbal dos antigos moralistas. E a sua incessante vivacidade crítica era uma água que vinha de uma fonte que tornou fértil e ágil a nossa cultura. Na sua morte, não se contaram, como agora é costume, pequenas anedotas biográficas ou aquilo que na vida é menos vida. Falou-se das suas ideias e da voz com que as afirmou. Isto ter acontecido, assim e neste tempo, já nos diz quem foi e aquilo que fez Tony Judt.

Por José Manuel dos Santos
jmdossantos@netcabo.pt
FONTE: Expresso online