sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A social-democracia é o novo radicalismo...

Tony Judt, um dos maiores especialistas do século XX europeu, escreveu um apaixonado apelo aos jovens "dos dois lados do Atlântico", "Ill Fares the Land". Pede-lhes que se irritem com o vazio moral do neoliberalismo e propõe-lhes o regresso a um lugar conhecido: o Estado-providência.

O mais recente livro de Tony Judt, publicado já esta Primavera em Nova Iorque e Londres, e com chegada prevista a Portugal no último trimestre deste ano, via Edições 70, não é um livro de História a acrescentar à sua extensa e brilhante carreira de especialista do século XX europeu. "Ill Fares the Land" (numa tradução possível, qualquer coisa como "o mal ameaça a terra") está também longe de ser apenas um livro de ciência política. Preso no seu corpo (sofre da doença de Lou Gehring, que vai degradando o sistema nervoso até à paralisia total dos movimentos, embora mantenha intactas as faculdades intelectuais), Judt não esconde aqui a preocupação principal dos intelectuais "engagés": mudar o mundo. E é assim que a obra do historiador, talvez a sua última obra, se transforma num manifesto apaixonado pela defesa de um projecto de sociedade que tão profundamente investigou e tão de perto viveu desde o nascimento, numa Londres ainda arrasada pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial.

Em "Ill Fares the Land", Tony Judt propõe-se firmar uma tese e construir um projecto de acção política. A tese é que a social-democracia e o Estado-providência são os melhores modelos de governação pública, de consenso comunitário e de sustentação de sociedades mais igualitárias e equilibradas, sem prejuízo da tolerância democrática e da liberdade individual. A acção política que reclama começa com uma nova forma de pensar a esquerda, reescrevendo os discursos sobre o Estado e os serviços sociais no reconhecimento de que o modelo neoliberal é insustentável a prazo pela desigualdade que gera e pelas tensões sociais que provoca. Os destinatários deste programa são os cidadãos dos países ocidentais, principalmente os "jovens dos dois lados do Atlântico". Não apenas porque "a última vez que uma geração expressou comparável frustração pelo vazio e a desinspiradora falta de sentido do mundo foi nos anos 20"; também porque "a divergência e a dissidência são fundamentalmente trabalho dos jovens".

Judt não cai no erro de se fechar numa fórmula maniqueísta. A social-democracia nórdica, recorda, foi por exemplo responsável por projectos de eugenia impensáveis; governos social-democratas estiveram por trás do "pior planeamento urbano dos tempos modernos"; o sentimento de falta de resposta por parte dos que mais precisam do Estado social agravou-se; a rejeição à dependência da burocracia estatal aumentou. E o que em muitos casos era um direito tornou-se um abuso. Como o da idade da reforma dos ferroviários franceses, fixada aos 55 anos numa era em que muitos começavam a colocar carvão nas fornalhas aos 13, mas que se manteve até esta época em que a profissão se exerce nas sofisticadas cabinas dos TGV.

O que está então em causa é uma comparação racional. "A social-democracia não representa o futuro ideal; nem sequer representa o passado ideal. Mas, entre as opções hoje disponíveis para nós, é melhor do que qualquer outra coisa ao nosso alcance", escreve. Expostos os perigos dos extremos à esquerda e à direita, o exemplo que nos resta analisar e, defende, desenvolver é o consenso social do pós-guerra que mobilizou a democracia cristã, o conservadorismo britânico e alemão ou a social-democracia nórdica. Como escreveu Ralph Dahrendorf, esse modelo "significa o maior progresso a que a História já assistiu. Nunca tantos tinham antes experimentado tantas oportunidades de vida".

Mais desiguais

Há nas 237 páginas do livro um sucessivo cruzamento de nostalgias e de paixões próprias de um cidadão que foi beneficiário das conquistas do Estado-providência. Mas também um sistemático recurso à memória histórica para nos confrontar com a sensação de que tudo é transitório na economia, na política ou nas relações internacionais. "Muito do que hoje nos parece ser 'natural' data dos anos 80: a obsessão com a criação de riqueza, o culto da privatização e do sector privado, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E, acima de tudo, a retórica que as acompanha: a admiração acrítica dos mercados livres, o desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento eterno". Ora, acrescenta, o materialismo nem sequer garante um modelo económico mais eficiente: "O pequeno crash de 2008 foi uma lembrança de que o capitalismo desregulado é o seu próprio pior inimigo".

O maior perigo da actual submissão ao livre mercado e do recuo do Estado na esfera social está, porém, no crescimento das desigualdades. "Do final do século XIX até aos anos 70, as sociedades avançadas do Ocidente tornaram-se todas menos desiguais. Graças aos impostos progressivos, aos subsídios do Governo aos mais pobres e à provisão de serviços sociais e garantias contra as desgraças imprevistas, as modernas democracias foram apagando os extremos da riqueza e da pobreza". Mas, afirma Judt, "nos últimos 30 anos deitámos tudo isso fora". A cada ano que passa, acrescenta, as distâncias entre a pobreza e a riqueza acentuam-se. Os casos que cita da General Motors (GM) e da cadeia de distribuição Wal-Mart são a este propósito esclarecedores: "Em 1968, o CEO (presidente do Conselho de Administração) da General Motors levava para casa, em salário e prémios, cerca de 66 vezes o valor pago a um operário típico da GM. Hoje, o CEO da Wal-Mart ganha 900 vezes o salário médio de um dos seus funcionários. De facto, a riqueza dos fundadores da Wal-Mart nesse ano equivalia ao rendimento da camada de 40 por cento da população mais pobre dos EUA: 120 milhões de pessoas".

Ora, argumenta Judt, a desigualdade é um vírus que contamina todas as classes sociais. O historiador não cita, mas poderia citar, o facto de a mensagem de Lula na sua primeira eleição ter tido grande aceitação junto dos jovens das classes altas, que acabaram por constatar que, apesar da sua riqueza, não podiam viver numa sociedade infectada com o vírus da exclusão e da violência.

"Somos muitas vezes cegos a isto", lamenta o historiador: "Os nossos sentimentos morais foram, de facto, corrompidos. Tornámo-nos insensíveis aos custos humanos de políticas sociais aparentemente racionais".

É com base neste retrato que Judt invectiva os jovens a "zangarem-se". Não porque tenham o dever de conduzir um projecto revolucionário e transformador das bases actuais da sociedade livre, da democracia parlamentar ou do capitalismo. Mas porque, citando o "papa" da economia clássica, Adam Smith "nenhuma sociedade será verdadeiramente florescente e feliz se uma grande parte dos seus cidadãos for pobre e miserável". Mesmo que a noção de pobreza seja discutível, Judt insurge-se contra os "sintomas do empobrecimento colectivo" que diz estarem "em toda a parte". "Auto-estradas degradadas, cidades na bancarrota, pontes perto do colapso, escolas falhadas, os desempregados, os mal pagos, os que não têm seguro..."

Sem segurança, sem confiança, as sociedades ocidentais ameaçam ruir, avisa Judt. "A insegurança alimenta o medo. E o medo - medo da mudança, medo do declínio, medo dos desconhecidos e do mundo não familiar - está a corroer a confiança e a independência nas quais se sustentam as sociedades civis" do Ocidente. Para Judt, uma das conquistas das social-democracias europeias foi uma rede de protecção contra essa insegurança. "Restaurar o orgulho e a auto-estima dos perdedores da sociedade foi uma plataforma central das reformas que marcaram o progresso do século XX. Hoje, voltamos a virar-lhes as costas. Ser beneficiário de ajuda pública, seja sob a forma de apoios à infância, alimentos ou subsídios de desemprego, é uma marca de Caim: um símbolo de falhanço pessoal", lamenta.

É urgente, diz, reclamar que o Estado reocupe a posição central da vida colectiva. Não o Estado totalitário dos extremismos do século XX, mas o Estado democrático e activista que configurou o "New Deal" e a "Great Society" nos Estados Unidos, ou o mercado social alemão. "O que é que a confiança, a taxação progressiva e o estado intervencionista legaram às sociedades ocidentais nas décadas que se seguiram a 1945? A resposta curta é, em vários graus, segurança, prosperidade, serviços sociais e uma maior igualdade". Mas as vantagens não foram apenas sociais: também se sentiram ao nível da economia. Muitas das críticas à ineficiência económica, à insuficiente inovação ou ao marasmo empresarial das social-democracias "são comprovadamente falsas". "Poucos ousariam dizer que os EUA tiveram falta de iniciativa ou empreendedorismo nesses anos", acrescenta.

Do Maio de 68 a Thatcher

Mas se tudo era assim tão quase perfeito, o que falhou? Judt assume aqui mais do que nunca o ofício do historiador para analisar o recuo do Estado providencial e o triunfo do capitalismo libertário. Entre as causas que assinala, estão a fragmentação do proletariado de colarinho azul no decorrer da década de 50 e os impactes de uma transformação baseada na autonomia individual. Mas é curioso verificar que, para Judt, a principal origem do fracasso do projecto da esquerda moderada está numa atitude de contestação que ainda hoje ela própria celebra com nostalgia: as revoltas estudantis dos anos 60, Maio de 68 incluído, e a cultura pop.

"O que uniu a geração de 60 não foi o interesse de todos, mas as necessidades e direitos de cada um", aponta Judt. Até então, "o centro da gravidade da argumentação política não estava entre a direita e a esquerda, mas na própria esquerda". Excepções, como as de Raymond Aron ou Isaiah Berlin, eram raras. A geração de 60 e a esquerda que a estimulou perderam "todo o sentido da partilha de propostas" e esvaziaram "o consenso implícito das décadas do pós-guerra", abrindo portas à emergência de um novo consenso baseado "na primazia do interesse privado". O "narcisismo dos movimentos estudantis, dos novos ideólogos da esquerda e da cultura popular dos anos 60" mudou tudo, e as suas influências chegam aos dias de hoje: "Os homens e mulheres que dominam a política hoje são inquestionavelmente produtos - ou, no caso de Nicolas Sarkozy, subprodutos - dos anos 60".

Esses novos valores da esfera privada e do utilitarismo individualista, na opinião de Judt, cristalizaram-se nos mandatos de Thatcher, Reagan e, noutra escala, Valéry Giscard d´Estaing, "os primeiros políticos do centro-direita a ameaçar o consenso do pós-guerra". De seguida emergiram os pensadores do capitalismo libertário, "homens como Hayek ou von Mises", que "pareciam condenados à marginalidade cultural e profissional", mas que, "quando os Estados-providência, cujo fracasso tão diligentemente profetizaram, começaram a sentir dificuldades, tiveram audiência para as suas opiniões".

Uma vez no poder, o pensamento em favor do recuo do Estado e da expansão dos negócios privados instalou-se, iniciando a tal fase de 30 anos que Judt defende agora ser urgente inverter. Além da economia, também os direitos, liberdades e garantias da democracia liberal ficaram ameaçados: "A redução da sociedade a uma fina membrana de interacções entre indivíduos é hoje apresentada como a ambição de libertários e de livre-cambistas. Mas não nos podemos esquecer que esse foi o primeiro e principal sonho de jacobinos, bolcheviques e nazis: se não há nada que nos una como comunidade, então estaremos profundamente dependentes do Estado. Uma vez que tenhamos cedido o valor do público ao privado, seguramente virá o tempo em haverá dificuldades em valorizar a lei (o bem público por excelência) em vez da força".

O Estado reabilitado

É tempo, diz Judt, de "começar de novo". Por onde? Pelo que se conhece e já foi testado. Mesmo que "o passado" seja "outro país", impossível de alcançar, há um diagnóstico que Judt propõe como ponto de partida: "Temos de aprender de novo a criticar quem nos governa". O discurso de Judt sai então da terminologia do consenso e envereda pelos trilhos do jacobinismo. "Não podemos ter esperança na reconstrução do nosso dilapidado discurso público a menos que nos irritemos com a presente condição", escreve.

Reinventado o discurso, o que é imperativo para que "o mal" abandone a terra e para que a política deixe de ser feita por "pigmeus" e uma massa anódina de votantes despidos de aspirações à cidadania? O programa é vastíssimo: novas leis, regimes eleitorais diferentes, restrições ao "lobbying" e ao financiamento dos partidos. E o reconhecimento da tensão e do conflito de interesses, contrário à tese de Adam Smith segundo a qual o enriquecimento de alguns promove o bem-estar de todos. "Tem sido lugar-comum afirmar que todos queremos as mesmas coisas. Isto é simplesmente falso. O rico não quer o mesmo que o pobre". A questão social é, sustenta o historiador, uma questão eterna das agendas políticas do Ocidente democrático. "Como devem as massas trabalhadoras ser trazidas para a comunidade - como eleitores, como cidadãos, como participantes - sem sublevação, protesto ou mesmo revolução?". As respostas da social-democracia "mostraram-se espectacularmente bem-sucedidas: não só se evitou a revolução como as massas trabalhadoras foram integradas num admirável grau", o que aliás Marx nunca julgou que fosse possível.

No seu apelo, Judt vê no Estado a ferramenta essencial para as mudanças. "Temos agora de nos libertar da noção [de que] o Estado é a pior opção disponível". Para esse passo ser dado, as novas gerações têm de aprender as lições dos perigos de "um Estado activista", mas precisam também de "aprender a pensar o Estado de novo". No balanço dos prós e contras, Judt rejeita as experiências do Estado soviético e totalitário, mas recusa-se a "retirar a palavra socialismo da história". Com um mas: o socialismo falhou, enquanto a social-democracia não só chegou ao poder em muitos países, "como superou os sonhos mais ambiciosos dos seus fundadores".

Na fórmula que Judt agora propõe, há tanta lucidez como emoção. Mas, para o exercício ser completo, falta acrescentar as críticas dos pensadores da Terceira Via, com destaque para Giddens; falta verificar as condições demográficas que favoreciam a solidariedade fiscal entre as gerações há meio século e que agora a complicam; falta enquadrar na teia das relações internacionais o sucesso chinês; falta analisar não apenas os erros das privatizações, mas também o sucesso da entrega a privados de serviços públicos, como é o caso da experiência sueca com escolas que dura há 20 anos. Falta, talvez, um pouco menos de utopia e um pouco mais de realismo. Mas haver nestes tempos sombrios quem tenha sonhos de transformação e os defenda com o talento, o saber e a paixão de Judt é boa notícia. O seu livro, por muito que se discorde da mensagem, vale por ser uma preciosa defesa de que a vontade colectiva faz mexer o mundo. Como escreveu Alexis de Tocqueville, insuspeito de ser revolucionário: "Não posso deixar de recear que os homens cheguem a um ponto em que olhem para cada nova teoria como um perigo (...), cada avanço social como um primeiro passo para revolução".

Por Manuel Carvalho
FONTE: Ípsilon