A escrita só faz sentido com a leitura. Explico-me: só se pode escrever quando se lê e quando se é lido. A leitura tem assim um efeito multiplicador, dialéctico e estruturante. Não posso, por exemplo, deixar de registar a estimulante recepção do texto anterior a este. Sobretudo na coincidência das leituras que foram feitas em relação a um aspecto que apenas esteve implícito: refiro-me a esperança. Exactamente a dimensão com a qual, devido às fustigações do quotidiano e ao carácter cíclico dos nossos infortúnios, cada vez lidamos pior.
Esperar o quê e para quê? Perguntarão os mais cépticos. Por dias melhores e para tentar ser feliz. Responderão os optimistas. E aqui aflora aquela que é seguramente a expressão suprema da esperança, seguramente um dos parentes pobres da sociedade contemporânea. Refiro-me à utopia.
Com alguma frequência e com alguma pertinência, a utopia é definida por alguns simplesmente como sonho. Sem ser descabida, por completo, esta associação, ela pode pecar por redutora tendo em conta a amplitude de significados, o alcance e a historicidade que caracterizam o termo “utopia”. Trata-se, pois, de uma palavra com um curso longo que, provindo etimologicamente do grego, transporta o sentido original de lugar nenhum. Paradoxalmente, um lugar que se institui como aspiração, como lugar de superação e de realização.
O que é mais assustador não é o facto de vivermos hoje sem utopias, ou com escassez de utopias. O que é verdadeiramente inquietante é a sensação, quase palpável, de que se perdeu a capacidade de gerar utopias. Mais grave ainda, de nem sequer nos questionarmos sobre a sua utilidade.
Entretanto, alguém como Ernst Bloch, conhecido filósofo alemão e um dos grande paladinos da utopia e da esperança, defende que a dimensão utópica está presente em todos os lados e que não existe uma só cultura conhecida que ignore a sua presença visto que se converteu numa dimensão antropológica essencial. Ainda, segundo ele, uma sociedade sem utopia é tão impossível como a um ser humano não sonhar.
Apesar desta inabalável e legítima convicção, o que não pode ser contornado é aridez das construções utópicas, no nosso tempo. O que na verdade prevalece é um inquietante sentido anti-utópico na forma como gerimos a nossa existência e o que está para vir.
Uma rápido olhar diacrónico leva-nos a algumas das grandes utopias geradas pela humanidade ao longo da História. Desde as utopias religiosas, sobretudo as de matriz judaico-cristã, ou a de uma governação perfeita em A República de Platão, ou a de uma sociedade também ela perfeita em a Utopia de Thomas More, ou nas formulações socialistas e da ideia de Progresso no século XIX, até às utopias libertárias, sobretudo das nações africanas, no século XX.
Apesar de algumas dessas utopias se terem realizado, apesar das suas manifestações perversas e mesmo abomináveis, justamente quando se transformaram naquilo que elas procuram recusar e superar, isto é, uma realidade insuportável, elas acabaram por estar na origem de novas utopias. Todas elas traduzindo, no essencial, uma confiança profunda na possibilidade de o homem poder olhar para o futuro, para o indiscernível, com a mesma convicção com que acredita que o sol nasce todos os dias. Afinal, a utopia é, ao mesmo tempo, um lugar que não é, mas também o lugar da felicidade.
Michel Foucault dirá sobre as utopias que elas consolam, porque, se não dispõem de um tempo real, disseminam-se, no entanto, num espaço maravilhoso e liso: abrem cidades de vastas avenidas, jardins bem cultivados, países estáveis e acolhedores; mesmo que o acesso a eles seja ilusório. Situando-se na própria linha da linguagem, elas, as utopias permitem os discursos, as fábulas e as projecções iluminadas de um mundo por vir, tal como podemos atestar neste inesquecível poema de Noémia de Sousa, “Poema da Infância Distante”:
Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.
Um dia,
o sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos…
Efabulação do futuro, a utopia é assim um mecanismo compensatório para negar o cinzentismo, o tédio, as incertezas, a desesperança, o sofrimento, as angústias e a dureza insustentável do dia a dia. Alternativa confortante, sem ser necessariamente alienante. Trata-se, afinal, de arquitectar uma realidade desconhecida a partir do que existe e é conhecido, fazendo o ser humano exercer aquela que é uma das suas maiores faculdades, senão a maior, a imaginação.
Tendo em conta a fragmentação, efemeridade e instabilidade do nosso mundo, raiando, vezes sem conta, o caos e o vazio como que a desafiar os limites da sua própria sobrevivência, nunca as utopias foram tão necessárias. Enquanto reinvenção e revalidação da ideia de bem, do interesse público, da harmonia social, a utopia é sempre uma alternativa valiosa que os homens oferecem aos seus semelhantes e ao mundo em que vivem.
É por isso que tendo em vista a complexidade da existência humana e do meio que nos cerca e do qual fazemos parte, as utopias podem ter motivações e configurações diversas: sócio-económicas, religiosas, políticas, ecológicas, tecnológicas, literárias, etc.
E as utopias, enquanto bem partilhado, apelam a um profundo sentido de compromisso geracional. Isto é, pensarmos individual e colectivamente que o lugar onde vivemos, que o mundo em que nos movemos, pertence, por um lado, aos que nos antecederam e que nos legaram, e por outro, aos que virão depois. Neste caso, a nossa obrigação é entregarmos um mundo melhor do que aquele que recebemos.
O que significa que a utopia vai-se tecendo, afinal, nas pequenas coisas que fazemos, nos impercepíveis gestos que fazemos e nas palavras despretensiosas que dizemos, mas sempre com o olhar no futuro, ou melhor, no além da realidade em que nos encontramos mergulhados.
No essencial, a utopia passa necessariamente pela descoberta do continente que jaz adormecido ou subvertido dentro de cada um de nós. E é, neste particular, onde se joga o grande desafio de realização futura: na busca de uma humanidade perdida, ou quase, em que sobreeleva o direito à individualidade, à afirmação da subjectividade, ou como diria Alain Touranie, no apelo ao Sujeito e à identidade pessoal. Isto é, de forma livre, inteligente, responsável e criativa negar toda e qualquer forma de homogeneização ou de hegemonização.
Por Francisco Noa
Fonte: O País Online