segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Contardo Calligaris: psicanálise e comportamento...

Contardo Calligaris é um psicanalista com sólida formação européia que caiu de pára-quedas no Brasil nos anos 80. Aqui fez os seus melhores amigos, apaixonou-se e casou-se, armou acampamento e nunca mais voltou a viver na Itália.

No Brasil, Contardo despontou para o estrelato como psicanalista e escritor. Com ares de galã, não demorou a tornar-se o preferido de nove entre cada 10 leitoras da Folha Ilustrada, o suplemento da Folha de São Paulo onde assina uma coluna semanal.

De suas andanças sem trégua pelo mundo, Contardo aprendeu muita coisa. Aprendeu a rir da vida, do mundo, de si mesmo e até deste repórter que o entrevistou. Senão, vejamos. Contardo Calligaris é o convidado desta semana.

Confira abaixo trechos da entrevista e no áudio acima a entrevista completa.

Marco Lacerda: Contardo, você é um italiano de Milão, com formação acadêmica européia. Um homem que viajou muito antes de descobrir o Brasil. O que te trouxe a esse país?

Contardo Calligaris: Como Cabral, foi por acaso. Na época, estava morando em Paris. O meu primeiro livro de psicanálise em francês seria traduzido em português e espanhol, o que me levou a viajar pela a América Latina para dar uma série de palestras em Buenos Aires e Porto Alegre, que foi o meu porto de chegada ao Brasil, em 1985.

Apaixonei-me pelo Brasil e por uma brasileira, claro! Faz parte, é tradicional. E achei muito interessante o que aconteceu por aqui. As platéias que encontrava - com as quais dialogava - eram decididamente mais interessantes que as platéias européias naquela época.

Na década de 80, a França vivia uma época de grande pirotecnia cultural, mas as pessoas que tinham sido importantes para mim haviam morrido: Foucault, Lacan, entre outros.

Tinha a impressão que a cultura francesa se encaminhava para um tempo de repetição do mesmo, aliás, impressão que se confirmou. Foi então que comecei a viajar entre França e Brasil, e finalmente, em 1989, decidi que queria ficar aqui.

Marco Lacerda: O Brasil sempre vendeu para o mundo o mito da sensualidade e da alegria. Você alguma vez acreditou nesse mito, como a maioria dos europeus?

Calligaris: Provavelmente quando vi algum folder turístico, antes de vir para cá (risos). Sei que existe a sensualidade, mas não sei de onde ela vem. No conjunto, considero os brasileiros sexualmente bastante caretas, por exemplo.

Provavelmente, nas sociedades um pouco mais fechadas e reprimidas, as fantasias sexuais vingam mais do que nas sociedades aparentemente mais abertas, mais expostas, no que concerne inclusive à exposição do próprio corpo.

Na realidade, o Brasil ainda é um país atravessado nesse aspecto, claramente pela herança incômoda da escravidão, que se expressa, entre outras maneiras, pelo fato das relações de desigualdade econômica e de poder serem silenciosamente eróticas.

Vou me explicar: se nós somos iguais e decidimos que vamos brincar de sadomasoquismo, então uma amarra o outro e tudo bem. Tudo acaba numa transa um pouco ‘original’, digamos assim. Isso é uma coisa, o poder se torna uma espécie de brincadeira erótica.

Por outro lado, se um emergente brasileiro (essa palavra caiu em desuso porque os emergentes brasileiros estão melhorando, além de bolsa de grife estão adquirindo também um pouco de cultura, o que não é mal).

Mas digamos, se um emergente brasileiro chega ao caixa do supermercado e não tem ninguém para empacotar, já maltrata a moça do caixa, xinga - essa também é uma cena erótica, silenciosamente erótica.

Ninguém, claro, vai transar. Mas nesse exercício brutal do poder, existe, do lado de quem maltrata, uma forma de prazer silencioso. Esse prazer atravessa as relações sociais de qualquer lugar onde a escravidão tenha sido o modo de produção durante tanto tempo.

Marco Lacerda: Contardo, falando como psicanalista: quais são, na sua opinião os dilemas cruciais que afligem a humanidade nos dias de hoje?

Calligaris: A gente não consegue - ou tem a maior dificuldade - em agir conforme o próprio desejo. Isso, aliás, sempre foi a coisa mais difícil. Todos temos desejos. Às vezes, a gente não tem desejos, mas isso é uma doença, uma patologia.

No entanto, agir à altura dos nossos desejos nem sempre é fácil. Requer coragem, o que está se tornando cada vez mais raro. A falta de coragem diante da vida talvez seja o sintoma que mais me impressiona.

Marco Lacerda: E o que leva as pessoas a essa perda de coragem?

Calligaris: A coragem custa. Às vezes, para agirmos à altura do nosso desejo, é preciso aceitar perdas e renúncias. Praticamente, não existe desejo sem perda porque não dá para ter tudo.

O que acontece: o cara quer um novo casamento, mas não quer perder a relação na qual ele está. Quer um novo amor, mas não quer renunciar ao patrimônio de história que acumulou com a mulher precedente e quer ver os filhos crescerem.

Não estou dizendo que o cara “deva” renunciar, mas a vida nos coloca constantemente diante de uma série de conflitos onde se trata de fazer compromissos.

Não se trata, necessariamente, de escolher os compromissos mais custosos, mas se trata de não desrespeitar completamente o desejo da gente. E isso não é fácil.

Marco Lacerda: Contardo, o que você chamaria de um ser humano normal nos dias de hoje? E o que chamaria de anormal?

Calligaris: O ser humano normal é o caso mais grave, porque a normalidade é uma certa falta de conflito interno, uma aceitação da vida externa e interna assim, como ela é. É uma espécie adaptação ao redor de um compromisso estável, não tem nada mais triste.

Marco Lacerda: Como italiano, você vem do país onde fica o Vaticano, sede da Igreja Católica, Apostólica, Romana. O catolicismo teve alguma influência na sua formação?

Calligaris: Sem dúvida nenhuma. Teve uma grande influência, não porque tivesse uma formação católica praticante. Meu pai era ateu, ou pelo menos rigorosamente agnóstico.

Tinha uma avó que era católica praticante que, é claro, me levava para a Igreja regularmente. Fui batizado, fiz a primeira comunhão, crisma e também passei um breve período em um colégio salesiano católico, onde cursei o último ano do colegial.

Fui um adolescente um pouco complicado, fugi de casa, fiquei um ano longe. Não teve nada a ver com os meus pais, que adorava completamente, mas apaixonei-me por uma canadense e aquilo era muito mais importante do que qualquer outra coisa. Quando voltei, fui para o internato de Milão para recuperar o ano que tinha perdido - outra ocasião de contato.

Tenho uma série de traços da educação católica e cristã, mas não tenho nenhuma simpatia pela hierarquia do vaticano, nem pela hierarquia da Igreja.

Hoje, se tivesse que ser religioso, certamente estaria do lado protestante ou então seria como a grande maioria, que se diz católica, mas guarda a sua total independência de pensamento.

Marco Lacerda: Lendo a sua coluna na Folha de S. Paulo, muitas vezes eu tive a impressão de que você leva uma vida de passageiro eternamente em trânsito, ou seja, sem residência fixa em lugar nenhum. Apesar disso você disse uma vez que viajar deveria ser proibido ou vivamente desaconselhável. Dá pra você falar um pouco sobre aparente contradição?

Calligaris: Não é nenhuma contradição. É verdade, não parei de viajar. Aliás, é como se todos os capítulos da minha história correspondessem a lugares de residência diferente. Certamente, foi a maneira que encontrei para imprimir mudanças na minha vida e não me arrependo.

Quando você viaja uma vez (não só para passar quinze dias de férias), mas quando você muda uma vez para outro país, não tem mais nenhuma razão para não continuar lá. E mesmo que você volte, viverá na saudade do lugar para onde você foi e de onde você voltou.

Quem viaja deve saber que viaja para sempre. Como dizia Fernando Pessoa: “Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, por a alma não ter raízes. De viver de ver somente!” E é isso mesmo, viajar é perder de vez e para sempre um lugar ao qual a gente pertenceria.

Marco Lacerda: Como ficam as relações entre as pessoas nesses tempos de comunicação instantânea via Internet, orkut, blogs e outros canais? Você acha que esses meios de comunicação contribuem para aproximar as pessoas ou na verdade acontece justamente o contrário: relações que se restringem apenas à troca de mensagens eletrônicas?

Calligaris: Não sou nenhum adversário da tecnologia e ainda menos da Internet, até porque, pela minha experiência, o que acontece é verdadeiramente o contrário.

Graças à Internet, pessoas que até então pensavam ser ‘monstros’, ‘perdidos no mundo’, descobriram que muitas outras tinham as mesmas fantasias eróticas e sexuais, e puderam se encontrar.

Graças à Internet, muitos que não tinham coragem de se aventurar pela noite para arrumar um parceiro conseguiram se encontrar, não só virtualmente, mas também realmente.

Alguns casam graças à Internet, outros simplesmente se juntam, outros simplesmente se juntam por uma noite. Muitas pessoas da terceira idade, por exemplo, descobriram o mundo, a possibilidade de contato, de encontrar parceiros sexuais e amorosos que pensavam ter perdido para sempre.

A grande queixa é: na Internet, durante o diálogo, é só uma relação virtual, você nunca sabe com quem está falando. Acho isso muito engraçado, porque esta me parece ser a regra de toda relação amorosa, mesmo quando a gente se encontra de verdade.

Entrevista realizada pelo jornalista Marco Lacerda no programa FrenteVerso, que vai ao ar aos domingos, às 21h, pela Rádio Inconfidência FM (100,9), de Belo Horizonte.

Fonte: Dom Total