segunda-feira, 24 de maio de 2010

Política Mundial de Drogas Ilícitas: Um Mundo Livre de Drogas... ou Direitos Civis?

 A última palavra da ONU

Em 1998 a Assembléia Geral das Nações Unidas realizou uma Sessão Especial (UNGASS) dedicada à discussão da política mundial de drogas. Durante a terceira convenção, a defesa de políticas mais pragmáticas e livres de qualquer diretriz mundial já ganhava alguma força. Dez anos depois, a maior parte dos países europeus ocidentais, o Canadá e Austrália já as aplicavam concretamente e reivindicavam agora por reconhecimento e maior autonomia de ação.

Sob o inaferível argumento de que os danos causados pela política desenvolvida pela ONU eram menores do que aqueles causados pelo consumo de drogas, mesmo considerando apenas as situações de abuso, a UNGASS ratificou as Convenções-Irmãs e colocou ao mundo um desafio, que na realidade, sob a óptica histórica, se constitui numa quimera: erradicar até 2008 a produção e o consumo de drogas ilícitas do planeta (Um mundo livre de drogas – podemos consegui-lo!) (UNO, 1998). Os pontos-chave debatidos no encontro foram os precursores químicos, os derivados anfetamínicos (entre eles o ecstasy), a cooperação judicial, a lavagem de dinheiro, a redução de demanda e a eliminação das plantações, com desenvolvimento de culturas alternativas (Jelsma, 2003). Há cinco anos da meta de erradicação planetária do “mal”, a ONU realizou em 2003 uma sessão intermediária para discutir o andamento do processo. Os resultados parciais foram considerados favoráveis e as estratégias rumo a 2008, mantidas (UNODC, 2004b).

Nenhum comentário sobre a existência de políticas alternativas à repressão foi incluído no relatório final, mesmo aquelas sabidamente eficazes para a prevenção da AIDS e outras DSTs, em frontal contradição com outras instâncias da própria ONU. Em suas recomendações gerais, o relatório trata do tema sucintamente, expressando preocupação acerca dos “esforços necessários para a redução da demanda de drogas ilícitas e para lidar com os problemas relacionados à transmissão do vírus da imunodeficiência adquirida (HIV/AIDS) e outras doenças infecciosas, de acordo com o que foi proferido pelas convenções de controle de drogas” (UNODC, 2004b).

Um mundo livre de... drogas ou direitos civis?

Talvez tenha sido o século XIX o mais frutífero e pragmático de todos. As revoluções Científica e Industrial abriram espaço para uma expansão tecnológica e comercial sem precedentes na história. Nesse mesmo século, a luta pela universalidade dos direitos civis atingiu e ganhou corpo constitucional em todas as nações ocidentais, lançando as bases para o surgimento do Estado de Direito.

Nesse contexto, apareceu o consumo de drogas contemporâneo, massificado e convertido em produto de consumo, ora incorporado ao instrumental médico, ora considerado danoso e merecedor de políticas de regulamentação e controle.

Além dos problemas médicos e sociais acarretados para o indivíduo, o consumo contemporâneo de drogas sempre foi associado ao mundo do crime, como um elemento capaz de sublevar massas e reforçar comportamentos anti-sociais (Musto, 1987; Musto, 2001).

Tem sido responsabilizado, ainda, pelo surgimento e o fortalecimento do crime organizado, cada vez mais difundido e influente dentro do aparelho estatal, sem que se questione se o fomento dessa nova criminalidade se deu em razão do comércio de drogas ou em função da clandestinidade que lhe foi imposta pelo proibicionismo (Escohotado, 1995; Glasser et al, 1997, Musto, 2001).

O aumento da criminalidade e da violência nas últimas décadas do século XX decorreram de uma complexa rede de acontecimentos, influenciados por fatores econômicos, políticos e culturais, alguns deles apresentados ao longo deste texto.

Por quase todo século XX, as políticas públicas de drogas tentaram lidar com a questão dividindo-a em dois flancos: os problemas de saúde relacionados ao consumo individual mereceram ações sanitaristas e assistenciais, voltadas para a prevenção e o tratamento dos usuários. Já os danos sociais suscitaram a criação de instituições repressoras, tendo o direito penal como seu principal instrumento (Passetti, 1991; Militello, 1997).

Há algumas explicações para fenômeno da violência contemporânea. A exclusão territorial e social observada em todo o mundo (imigrantes nos países ricos, concentração de renda nos pobres), tornou indivíduos, famílias e comunidades particularmente vulneráveis, abrindo espaço para a violência e o conflito. Nesses locais não há oferta de emprego, tampouco opções de lazer. As pessoas desempregadas transformaram-se num formidável “plantel de reserva” sendo facilmente cooptadas pelo tráfico de drogas, o que realimenta o crime. Fix (2001) afirmou que a “segregação sócioespacial-ambiental” da população paulistana para bairros mais distantes, ao longo das últimas décadas, reduziu as chances de emprego e propiciou abandono à infância, uma vez que as mães ficam mais horas do dia ausentes. Além disso, há um contato cotidiano dessa população com a falta de saneamento, enchentes, medo de despejos e violência. Dessa forma, a violência mostra-se relacionada a outros vetores, e, quando ocorre na vigência do consumo de substâncias psicoativas é contextualizada, ficando sua importância, em grande medida, dependente de fatores individuais, sociais e culturais (Minayo ET al, 1998).

A ocorrência de crimes de natureza aquisitiva, isto é, aqueles que visam a angariar fundos para o consumo de drogas, parece compreender apenas parte dos crimes relacionados às substâncias psicoativas. Por sua vez, o tráfico de drogas está mais vinculado à violência decorrente da a ausência de um foro formal para a resolução das questões envolvidas no funcionamento orgânico desse tipo de atividade comercial ilícita (Minayo et al, 1998; Szwarcwald et al, 1998), o que leva ao surgimento de alternativas baseadas na autotutela, corroboradas pelo meio propício à exclusão onde se instalaram. Esse último mostra-se igualmente carente e descrente do Estado como instituição capaz de oferecer caminhos formais para a resolução de conflitos (Minayo et al, 1998). Devido a isso, tais alternativas têm na violência o principal modo para a solução e o disciplinar das questões de mercado e de convívio, atribuindo aos homicídios força de lei para lidar com delatores, mau-pagadores e concorrentes do tráfico.

A presença de indivíduos extremamente jovens no cotidiano do tráfico de drogas decorre provavelmente das desigualdades sociais do país, constatadas por meio da concentração de renda e da ausência de oportunidades, tais como nutrição, educação, assistência médica, habitação e formação profissional adequadas (Szwarcwald et al, 1998). Em contrapartida, o mercado ilegal do tráfico oferece possibilidades de ascensão e de relações de reciprocidade social, vantagens imediatas raramente encontradas nessas regiões socialmente excluídas (Minayo et al, 1998; Szwarcwald et al, 1998; Baptista et al, 2000).

Em meio à insegurança gerada pela massificação da violência e pelo crescimento do crime organizado, as soluções têm partido de premissas maniqueístas: as drogas são as responsáveis pelo surgimento do crime e suas máfias, os usuários são seus maiores mantenedores e a repressão amparada na sanção penal, a melhor saída (Escohotado, 1995; Glasser, 1997).

Desse modo, a política de drogas em países como os Estados Unidos tem um eixo de conotação tipicamente militarista e acabam se tornando mais uma política de segurança pública do que de saúde, com intervenções cada vez mais profundas do Estado sobre os direitos civis e endurecimento das medidas punitivas e restritivas de direitos (Glasser, 1997). Segundo Karam (1997), enquanto o sistema penal é proposto como a ‘fórmula mágica’ para erradicar as drogas ilícitas e devolver à sociedade a paz e segurança, o que se observa é “a intensificação do controle do Estado sobre a generalidade dos indivíduos”. Nos últimos tempos (e ao longo da História), conforme o aparato repressivo se mostra incapaz de combater a violência e o crime, novas soluções repressivas foram sendo criadas. Exemplo dessa tendência são as cortes de drogas estadunidenses: como o Direito Penal foi incapaz de sancionar a ordem, passa a funcionar também como agente assistencial e terapêutico. Em momento algum, porém, foi questionado se este, desde o início, era o fórum mais adequado para o tratamento dessa questão.

No que diz respeito ao dependente de drogas, a criminalização do porte cria uma situação no mínimo paradoxal: de um lado, é considerado indivíduo com direito à assistência médica e psicossocial. De outro, alguém suscetível de sanções penais, esvaziado, assim, de seus direitos civis. O quanto tal cisão retarda e dificulta o seu acesso ao tratamento é um tema para estudos futuros.

Vivemos um momento de profunda crise social e as respostas mais atraentes, ainda que meramente simbólicas, têm sido a adoção de políticas que recrudescem o tratamento punitivo dado ao cidadão usuário de substâncias psicotrópicas e aumentam as instâncias de controle estatal sob a totalidade dos indivíduos, mediante a adoção de medidas que restringem ou suprimem direitos e garantias individuais conquistadas ao longo da história como se pretendeu demonstrar no presente trabalho. Urge, portanto, reagirmos à imposição de uma unanimidade de ação política buscando alternativas criativas e viáveis e questionando sempre, especialmente quando a realidade nos é exposta sob o filtro de uma única ideologia o que nos conduzirá, fatalmente, a incorrer em ilusões de ótica.

Marcelo Ribeiro = Juiz e advogado e ministro do TSE - ministro do tribunal, (jornalista) - Repórter fotográfico do jornal Tribuna de Minas

Maurides de Mello Ribeiro = Professor Livre-Docente do Departamento de Direito Penal. e professor de Direito Penal na Universidade São Judas, em São Paulo, e nas Faculdades de Campinas; presidente da Comissão de Política para as Drogas do IBCCRIM) conversando sobre “Drogas e Política Criminal”.

(FONTE: doc PDF, Internet)