sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Hineni: Estou pronto, Senhor...


"Tu queres isto mais escuro? (You want it darker?) Perguntou ele, com a voz cava e a música cheia de sentimento. E responde: Hineni! Estou pronto Senhor (I am ready, my Lord). A mesma palavra hebraica הנני que Abraão respondeu a Javé (YWHW) quando Este o chamou para sacrificar Isaac (o que, como se sabe, não aconteceu, simbolizando o fim dos sacrifícios humanos). Hineni significa qualquer coisa como ‘Aqui estou eu’ ou ‘Estou às ordens’ ou ainda ‘Estou pronto para o que pretenderes’, mas de uma forma que não tem recuo, é espiritual e solene.

Quando Cohen responde no último álbum Hineni, quer dizer o quê? Que regressa às origens da sua religião inicial? Não faço ideia, mas estou certo de uma coisa: a sua grandeza em toda a carreira deve-se, sobretudo, ao facto de o amor e a espiritualidade se encontrarem e se derramarem em toda a sua obra.

E o verdadeiro amor, súmula dos mandamentos segundo Jesus Cristo é, escreveu Leonard Cohen em Hallelujah, como um fantasma que todos sabem o que é, mas poucos o viram. Talvez Cohen o tivesse, apesar de dizer que necessitava perdão e que se esqueceu de rezar aos anjos de tal modo que os anjos se esqueceram dele (So long, Marianne).

Seja como for é arrepiante abrir um álbum de músicas intitulado “Tu queres isto mais escuro” proclamando Hineni e traduzindo de seguida por “Estou pronto, Senhor” e falecer dois meses depois, segundo a família e quem o acompanhou, em plena paz.

Declaração de amor por Leonard Cohen*...

Não foi um cantor que morreu; nem um músico, nem um literato, nem um poeta. Foram quatro génios em um só. Desde que escreveu os seus primeiros poemas e romances, que foram aclamados pela crítica, passando por ganhar o Prémio Príncipe das Astúrias de Literatura (bem mais inteligente este júri que os da Academia do Nobel), até ao seu último trabalho musical, no mês passado, Cohen foi um completo homem do renascimento, ele próprio um príncipe.

E hoje apetece-me escrever sobre ele, ouvir a sua música, as suas palavras, porque ele é imortal, ao contrário da maior parte das figuras com tão pouco interesse sobre as quais todos os dias escrevo. As suas palavras brotam de uma nascente limpa e desaguam dentro de cada um de nós, já com a afluência da música, onde comovem, inquietam, despertam e repousam. Se é possível amar o belo, o sublime – e eu sei que sim – digo que amo a obra de Leonard Cohen. O homem, infelizmente, jamais o conheci.

O amor, o belo, o sublime – eis conceitos que caíram em desuso num mundo em que a arte, em boa medida, deixou de ser a aspiração aos valores positivos, para se tornar num choque, na exaltação do ordinário, do vulgar, do sujo, do feio, do lixo. Não com Cohen. Com ele, o transcendente viveu em acordes, em textos, em poemas e viveu na ansiedade da busca improvável, da estrela inalcançável, do sonho impossível. Com Cohen jamais fomos condenados, como com outros, a 20 anos de aborrecimento, apesar de ele afirmar em ‘First we take Manhattan’ que tinha sido ele próprio condenado a essa sentença: “20 years of boredom”.

Que a arte se tenha, no geral, transformado numa chatice que alguns intelectualoides, no geral com ar doente, descodificam para os outros basbaques que no que veem, no que ouvem ou no que leem no geral não descortinam um sentido preciso, uma linha clara, um sentimento digno, é próprio da destruição da civilização. É Jacques Barzun, penso eu, que na sua obra “Da Alvorada à Decadência” nos recorda que o fim das civilizações foi sempre acompanhado por uma arte que deixara de aspirar ao sublime para ser asperamente chocante. Se assim é, Leonard, lá onde tu estás, na mão direita de Deus, como Antero de Quental, foste dos últimos a lutar pela nossa civilização, pelas 900 janelas do salão de dança de Viena onde se rodopia ‘Take this waltz’.

É amor, o amor puro dos trovadores. É como tu disseste do estudo nas faculdades que frequentaste, Direito em McGill, Montréal, Canadá, e estudos gerais em Columbia, Nova Iorque, EUA, “paixão sem carne, amor sem clímax”.

Como disseste, apenas escreveste música e palavras de forma honesta. Nunca pretendeste ser popstar, nem ser agreste, nem liderar a juventude, nem alterar o mundo. Pretendeste o que cantaste; dançar a valsa; Marianne, tua mulher; Suzanne Verdal (não a Suzanne Elrod, mãe dos teus filhos, mas a mulher do teu amigo Armand); os mistérios do Oriente com os budistas; a transcendência do ego; o domínio das paixões; o perdão. “Alguém tem de nos perdoar pelas escolhas que tomamos para amar, porque os caminhos são muitos e negros, e somos ardentes e cruéis durante a nossa viagem” – eis o que poderia ser o teu epitáfio.

So long, Leonard, sabe que por todo o lado no mundo houve e haverá quem te compreenda, quem ame o que tu amas, quem te perdoe. Hallellujah!"...

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