sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

E se o Estado chegasse à favela?...

As forças policiais e militares entram no Complexo do Alemão - pequeno quando comparado com algumas das favelas do Rio de Janeiro - e as imagens não se distinguem de uma qualquer guerra. Como se chegou a este ponto?

A ausência de Estado não leva à ausência de poder. Nem sequer à ausência de opressão. As relações de poder criam-se sempre, no vazio que o Estado deixa. No caso de muitas das favelas do Rio - e em muitas regiões da América Latina - ele é substituído pelo poder do narcotráfico. E percebe-se porquê. Ele tem tudo o que um Estado precisa - recursos financeiros, humanos e bélicos - para garantir o monopólio da violência e impor os seus próprios códigos e leis. Sem democracia nem normas que defendam os cidadãos do abuso.

Quando falo de ausência de Estado, não falo apenas (nem sobretudo) de forças repressivas. Falo de infra-estrtutras, apoio social e democracia. Na realidade, o único contacto que uma parte da população carioca tem com o Estado é com a polícia. Até agora, o Estado ofereceu-lhes pouco mais do que os traficantes: violência, corrupção e atropelo sistemático à lei. O Estado representou sempre um elemento estranho a estas comunidades, abandonadas à sua própria sorte. "Tropa de Elite", que fez vibrar os espíritos vingativos de muita classe média brasileira, retratava, com tons de heroísmo, esse Estado tão violento como laxista.

As entradas nas favelas foram sempre feitas através de incursões punitivas que deixavam atrás de si um banho de sangue. Corro o risco de ser optimista, mas há alguma coisa que está a mudar. E a imagem de muitos populares das favelas a aplaudir esta invasão - é disso que se trata -revela essa mudança.

A Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) tiveram o objectivo de mudar esta forma de actuar. Tratam-se de forças de ocupação. Forças que pretendem permanecer no local. As bandeiras brasileiras e do Estado do Rio de Janeiro, nos pontos mais altos do Complexo do Alemão, simbolizam essa ideia. Mas, ainda assim, continuava a tratar-se de uma ocupação quase exclusivamente repressiva, em que o poder dos traficantes era substituído pelo poder das forças policiais.

Esta ocupação de guerra, precipitada pela reacção dos traficantes, tem algumas diferenças com o passado. Apesar de mais de trinta mortes, sabe-se que entre eles não estão as dezenas de inocentes que as entradas policiais nas favelas costumam trazer. Não há, apesar de tudo, os relatos da violência indiscriminada costumeira, que trata todos os moradores como potenciais criminosos. E há uma diferença no discurso do poder político. Ele fala de direitos humanos e, acima de tudo, do que tem de ser feito (e no complexo do Alemão alguma coisa já foi feita) para lá e depois da acção policial: mais investimento nas infra-estruturas básicas e comunitárias para aquelas populações. E, por cansaço e por uma boa dose de esperança que resulta destas duas novidades, a reacção das populações das favelas é diferente.

O optimismo nasce desta ideia: parece existir vontade política para mudar o estilo de intervenção que, assumindo que sem segurança não há liberdade, vai muito para lá do discurso da "lei e da ordem". Quer Estado, mas completo: com democracia e o mínimo de direitos sociais. Sabendo que a vantagem do Estado Democrático sobre o poder dos traficantes não vem com os seus tanques. Vem com direitos e deveres. Se, reconquistada esta pequena favela, o poder político não se esquecer disto, há razões para o optimismo dos cariocas - os das favelas e os outros. Porque todos sabem que não há ocupação militar de partes de uma cidade que garanta a paz. Só quando os favelados forem brasileiros por inteiro aceitarão as leis que, até hoje, nunca lhes serviram de muito.

Se o governador do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) for coerente com o que diz (e sabemos que palavras não chegam) e vencer esta batalha, mostra que as preocupações sociais e a defesa da segurança pública não só não são contraditórias como, pelo contrário, são a única resposta eficaz à criminalidade. Porque nem os reis da droga são vítimas da exclusão social - eles são os exploradores na sua forma mais primitiva -, nem as populações das favelas têm de estar condenadas à marginalidade. Porque a segurança não é, nunca foi, uma questão essencialmente policial. Ela é, antes de mais, uma questão política que se resolve com um Estado Democrático, respeitador dos direitos humanos e promotor da igualdade social. É isso que Sérgio Cabral tem dito. Veremos se é isso que fará.

Por Daniel Oliveira
 
Fonte: Expresso Online