terça-feira, 27 de abril de 2010

Primeiro Poema do Amor Difícil...

                                                                                                  Alcides Beirão, Jarros II, 1999


 Devolveste-me o sem sentido original
das coisas
Devolveste-me as ruas ao natural
as ruas só por si
as ruas estoirando liberdade por todas as frestas
das pedras
as ruas em que dantes pesavas
me oprimias
as ruas que dantes eram tu
tu apenas tu em todas as esquinas
de lado a lado nas paredes
que me estreitavam até gritar
o teu nome

Devolveste-me as ruas livres
descomprometidas
as ruas sem nome sem encontros sem sentido
as ruas que se despem às estrelas
para ninguém
Devolveste-me as árvores
as árvores apenas elas mesmas
no impulso lenhoso dos seus ramos
na sua casca áspera
nas suas casuais flores
para ninguém colher

Devolveste-me o tempo fluindo sem margens
sem fronteiras
as madrugadas espantadas de existirem
as madrugadas sem ninguém à espera

Devolveste-me as noites fruto fechado sobre si
o céu sozinho

As estrelas já não se juntam
para escrever o teu nome
existem
resistem em seu lugar
de olhos muito abertos e brilhantes
sem lágrimas

Devolveste-me os Cafés
cheios de gente que afinal
existe

Devolveste-me o tampo liso das mesas
sua lúcida certeza
de estar só

Devolveste-me as algibeiras sem nada
corajosamente sem nada
só para meter as mãos

Devolveste-me o deslizar dos barcos no rio
sua orgulhosa serenidade
Não mais terás que ver
com barcos e comboios chegando
e partindo

Todos os comboios e barcos partem
e chegam
sem ti
Todos são iguais
e livres
e inúteis

Me encontro
de novo
a sós com as coisas
As mãos sem nada nas algibeiras vazias

me lanço nas ruas com furor
acamarado com sua brutal nudez
sem disfarce
 Sabemos que nada temos para trocar
que existimos cada um em seu lugar
sabemos

que apenas nos podemos dar
inteiros
sem paixão
distintos

Ruas paredes pedras
árvores ruas
luas barcos mastros
te devemos
nossa solidão recuperada


In"Os dedos os dias as palavras", Porto: Editora Figueirinhas, 198

(FONTE: Poetas Apaixonados – Poesia de Amor de autores portugueses)