quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Toda uma Vida...

“Agora perco a vista na linha do horizonte, lá longe, num traço azul carregado, que separa o mar do céu. Olho insistentementepara o Sul, para o oceano, como se de lá viesse algum bem, ou qualquer boa surpresa.
Há muito mais de oitenta anos, quando vi o mar pela primeira vez, ele estava a Norte e nestas quase nove décadas de vida serpenteei até me confundir, até ver o mesmo oceano em dois pontos cardiais opostos, perdendo rastos da minha vida aqui e ali, levada por não sei que destino ou fado, nem por que vento ou estrada. Nem sempre me lembro do passado, mas ultimamente ele surge-me dentro da cabeça como se tivesse estado, todos estes anos, emboscado à espera da fragilidade do meu corpo de velha, tentando cobrar lembranças terríveis de tempos tão longínquos para mim quanto próximos na história.
Anos a fio, só muito raramente me vinham à cabeça essas recordações e, então, impunha-me um enorme esforço para não chorar de forma convulsiva, mordendo os lábios, as mãos, os braços, os livros que estava a ler ou, de noite, as almofadas da cama.
Agora já nem vontade de chorar, nem tão-pouco me chego a entristecer. Compreendo bem que a vida faz parte de um jogo cujo sentido ou importância jamais captamos, se é que ele existe; entendo que não foi a mim, especialmente, que me aconteceram estas coisas terríveis – eu sou apenas uma parte delas, a sua imagem viva, a sua recordação nos outros. Tudo nos aconteceu a todos; todos sofremos pelas mesmas razões que eu sofri e aqueles que viverem continuarão a penar por causa dos males de que eu fiz parte.

Agora já não choro. A morte transformou-se, para mim, em algo trivial e íntimo. A própria desgraça não passa, a meu ver, de uma fatalidade da história de cada um – que em conjunto faz a nossa história comum – e que afecta cada indivíduo de forma diferente, pessoal, quase intrínseca. Não há ninguém feliz, salvo os pobres em espírito, os loucos e os inconsistentes. Cada um de nós, pessoas banais e normais, carrega uma infelicidade muito própria, ainda que tenha, aqui e ali, lampejos de paixão, de alegria, de euforia, de satisfação"…