quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Paixões...

"Se o analista literário, de fato, encontra limites ao seu trabalho de objetivação cientifica, é bastante normal: ele é parte interessada do processo que desejaria analisar, pode virtualmente aí desempenhar (quer dizer, também aí arremedar) todos os papéis... Este limite dá positivamente a condição de sua inteligência, de sua leitura, de suas interpretações. Mas qual seria a condição dessa condição?... Ela consiste em que o próprio leitor crítico esteja exposto a priori e sem fim a alguma leitura crítica...

O que pode escapar a essa verificação sacrificial, assegurando assim o próprio espaço deste discurso, por exemplo?... Nenhuma questão, nenhuma resposta, nenhuma responsabilidade... Digamos que há um segredo aí... Testemunhemos: há segredo aí; ficarei neste ponto, mas não sem algum exercício de andar apofático sobre a essência e a existência de um tal segredo (...).

(...) O Segredo não dá lugar a processo algum. Nem mesmo é um ‘efeito de segredo’. Ele pode se prestar a isso, mas nunca se rende a isso... A ética da discussão sempre pode não o respeitar (ela lhe deve respeito, embora isso pareça difícil ou contraditório, pois o segredo é intratável), mas nunca o submeterá. (...) o segredo fica lá, impassível, a distância, fora de alcance.

Aí não há mais tempo nem lugar...

Talvez eu apenas quisesse confiar ou confirmar meu gosto (provavelmente incondicional) pela literatura, mais precisamente, pela escritura literária. Não que eu ame a literatura em geral nem que a prefira ao que quer que seja (...). Entretanto, se, sem amar a literatura em geral e por ela mesma, amo alguma coisa nela que não se reduz de modo algum a uma qualidade estética, a uma fonte de fruição formal, isto seria em lugar do segredo... Em lugar de um segredo absoluto... Aí estaria a paixão: não há paixão sem segredo, este segredo, mas não há segredo sem paixão...

A literatura liga seu destino a uma determinada não-censura, ao espaço da liberdade democrática (liberdade de imprensa, liberdade de opinião etc.). Não há democracia sem literatura, não há literatura sem democracia... Sempre é possível não querer saber nem de uma nem de outra, mas ninguém deixa de passar sem elas sob qualquer regime... Cada vez que uma obra de arte literária é censurada, a democracia corre perigo... A possibilidade da literatura, a autorização que uma sociedade lhe dá, o fato de levantar suspeitas ou terror a seu respeito, tudo isso vai junto – politicamente – com o direito ilimitado de fazer todas as perguntas, de suspeitar de todos os dogmatismos, de analisar todas as pressuposições, quer as da ética, quer as da política da responsabilidade...

Há na literatura, no segredo exemplar da literatura, uma chance de dizer tudo sem tocar no segredo"...  (prometo que vou concluir no próximo ano)...

(Jacques Derrida. Paixões, Papirus Editora, Campinas, SP. 1995. Tradução Lóris Z. Machado )