terça-feira, 14 de setembro de 2010

B - AUMENTO DO PODER DO ESTADO

Se o indivíduo é submetido às estratégias financeiras, ele o é igualmente ao Estado do qual é cidadão. A esse respeito é preciso apontar, com H. Arendt (1973), para uma contradição entre os direitos do homem, que visam o universal no homem, e os direitos do cidadão, que insistem na especificidade desse homem e seu sentimento de pertencer a uma nação, o que faz surgir e desenvolver o apátrida, o refugiado. É certo que ele tem direitos no seu país, mas direitos que dependem apenas da boa vontade

do Estado, mesmo daquele que é democrático. Deve respeitar e submeter-se a todas as leis, mesmo àquelas que lhe parecem injustas ou arbitrárias, e mesmo se for tratado como cidadão de segunda classe, como o são os trabalhadores informais da América Latina.

Ele é também submetido à vontade de seu Estado de fazer guerra às demais nações (que foi no século XX, na maior parte do tempo, uma guerra ideológica, total e de massa) ou à suas próprias determinações (guerra civil, genocídios do tipo que se viu no Camboja, em Ruanda, por exemplo). O

homem não deve ser apenas um trabalhador que contribui para a riqueza de sua nação, ele deve ser e querer ser um guerreiro. Não é sem motivo que E. Jünger, em seu livro Le travailleur et la mobilisation totale (1930), unificou as figuras do trabalhador e do guerreiro: todo trabalhador permite à sua nação ganhar, portanto ele é um guerreiro; todo guerreiro realiza um trabalho necessário à nação – preservá-la de outras ou de levantes internos –; ele é, portanto, um trabalhador. De qualquer forma, o Estado pode

exigir dele uma identificação completa aos seus valores – como no caso da Alemanha nazista e do sistema totalitário soviético – e definir quem tem o direito e o dever de fazer parte do Estado-nação e quem deve ser descartado, rejeitado ou eliminado. Algumas pessoas tornam-se indivíduos cuja “vida é indigna de ser vivida”. Aquele que não é incluso no discurso do amo r comum não é digno de viver, daí os campos de concentração e os campos de morte.

Michel Foucault escreveu estas linhas que nos convidam a meditar: “O homem, durante milhares de anos, era aquilo que dele pensava Aristóteles, um animal vivo e cada vez mais capaz de uma existência política. O homem moderno é um animal vivo cuja vida é constantemente questionada,

não importa o que ele faça”.3 Ele mostra, assim, que nascia a biopolítica, ou seja, que a vida tal como ela era, tornara-se uma questão política. O que leva G. Agamben, autor de Homo sacer (1997) a dizer:

“A politização da vida constitui o acontecimento decisivo da modernidade”. Assim, o homem dito autônomo, o homem sacralizado e sagrado dos tempos modernos, pode vir a ser como o Homo sacer do antigo direito romano, um indivíduo não sacrificável – pois isso significaria que ele ainda é parte da espécie humana –, mas sim um indivíduo passível de ser morto sem sanção. O Estado total (ou totalitário), que coloca em prática essa biopolítica, funciona sob o modo da exceção que se torna a regra (o que leva C. Schmitt, teórico do Estado total, a dizer: “a fonte da lei é a palavra do Führer” – quanto aos stalinistas e aos maoístas, sabemos que ambos tinham sempre razão).

O homem pode ser assim rebaixado à condição de sub-homem. Vê-se, então, que o homem levado em consideração enquanto homem (e não enquanto o que ele era antes: camponês, artesão, comerciante, etc.) pode ser totalmente sujeitado. Retire-se dele a cidadania, e ele não é mais um homem; rebaixe-o à condição de animal, e ele não é mais um homem. E

tornado igual a todos, ele pode tornar-se um idêntico, um clone, e pode ser substituído por um outro idêntico (a racionalidade instrumental, que considera cada um apenas um objeto, reforça essa tendência). Quanto aos dominantes, cresce a tentação de serem paranóicos, perversos ativos e perversos apáticos (carrascos que se habituam a tudo). É certo que não estamos mais nos tempos do Estado total ou totalitário. A democracia representativa triunfou. Mas, de fato, como vimos, é a regra do dinheiro

que adveio. O que torna o sujeito menos dominado pelo Estado (exceto nas ditaduras) é substituído pela sua sujeição ao dinheiro. Os indivíduos tornam-se meros consumidores ou “mercenários”. O cinismo se desenvolve. Os políticos parecem cada vez menos críveis, pois um bom número deles se deixa corromper.4 Um novo “mal-estar” está em vias de aparecer.