segunda-feira, 18 de julho de 2011

À Luz do Índico...

Lourenço Marques. Niassa. Pemba. Nampula. Lichinga. Beira. Maputo. Das províncias de Moçambique seria possível listar um itinerário e desenhar um mapa para uma viagem pelo norte do país. Esse desenho, traçado pela memória do passado e pelos rabiscos do presente de Miguel, personagem central do romance A luz do índico, do escritor português Francisco José Viegas, permite ao leitor transitar pelas ruínas de um espaço e de um tempo que não existem mais.

Publicado em Portugal em 2002, com o título Lourenço Marques, no Brasil foi lançado pela editora Língua Geral em 2007 e renomeado A luz do índico. Se de um lado temos um título referencialmente espacial, de outro temos uma referência imagética que atravessa a narrativa de Francisco José Viegas. Lourenço Marques era o antigo nome de Maputo, capital e maior cidade de Moçambique e sugere, após a leitura do romance, a relação espaciotemporal entrevista a partir das lembranças de Miguel ao retornar a Moçambique depois de vinte e sete anos. A referência imagética é percebida no título da obra publicada, no Brasil, como A luz do índico. Sem deixar de lado o referencial espacial – o oceano Índico que banha Moçambique a leste – focaliza-se, contudo, a luz. Nesse sentido, percebemos uma visada poética no título do romance quando nos deparamos com a afirmação de Miguel ao explicar essa luz, “Aquela luz perseguira-o como uma ameaça e como um aceno fatal, tão cortante como a lâmina do seu primeiro canivete, tão brilhante como os raios que se viam ao longe, sobre o mar da Inhaca, a partir da varanda da casa, ao fim da tarde.” (VIEGAS, 2007, p. 128). A personificação da luz em ameaça ou aceno fatal, a perseguição ou a morte, sugere a importância que isso terá para o desenvolvimento da trama.

Autor reconhecido por seus romances policiais, cujo detetive Jaime Ramos tornou-se figura singular em pelo menos três narrativas: Longe de Manaus (2005), A poeira que caiu sobre a terra (2006) e em seu último romance O mar em Casablanca (2009), Viegas apresenta uma narrativa que sugere já em seu título, Lourenço Marques, um viés incômodo.

A referência à atual Maputo recupera um passado anterior à Guerra civil de Moçambique e um presente marcado pela destruição deixada por ela. Elemento que atravessa constantemente a narrativa, a guerra é revista pelos olhares dos que ficaram e sofreram suas atrocidades e daqueles que fugiram e já não possuem identificação com ela. Entretanto, não se trata de um romance que pretenda – na esteira dos romances de formação – discutir a construção de uma identidade nacional em uma África pós-colonial.

O romance inicia com a descoberta do cadáver de Gustavo Madane, integrante da Frelimo, “Quinze anos de guerra, desmobilizado em 1993. Tratava o Samora por ‘tu’.” (VIEGAS, 2007, p.17). O excombatente tornara-se figura de várias passagens pela polícia, a qual andava no seu encalço esperando algum deslize, especialmente, o capitão Domingos Assor, cujo passado, iremos descobrir no decorrer do romance, era marcado por mágoas pessoais em relação a Madane.

Uma ruptura corta a narrativa e conduz o leitor ao aeroporto de Maputo. Através da utilização do discurso indireto livre, uma onda de lembranças são evocadas pelo personagem que, ao descer do avião, ouve a voz do alto-falante citar: Pemba, Beira e Nampula. Ou as cidades do passado: Beira, Nampula e Porto Amélia. A voz e as cidades citadas são o fio que reacende a memória do lugar e de um passado distante. Utilizando-se do fluxo de consciência, os pensamentos do personagem são apresentados num grande jorro de informações e lembranças que recuperam, através da linguagem, o passado colonial de Lourenço Marques, a Pérola do Índico...

O que pode ser percebido no fragmento que segue,

Não fales da guerra, Venda, que eu torturo-te: enquanto andavas aos tiros, a defender a Pátria, a dormir no mato e a apanhar malária, eu comia banana com leite condensado, bifes com molho de amendoim, bolo catembe, caranguejos à sofala, cuzcuz de Moçambique, matapá e mimini; (...) podiam ser estas memórias ou ser outras (...) tu não sabes mas eu não venho à procura de uma vitória, não venho à procura de um combate que ficou por fazer, eu sou um derrotado, um dos vencidos, nunca poderia querer ganhar uma guerra em que não entrei, não me lembro do cheiro de pólvora, do cheiro dos mortos, do cheiro de merda (...). Lembro-me de uma cidade. Lembro-me de uma estrada. Lembro-me de um retrato. Lembro-me de uma tarde fantástica, lembro-me de ter dezasseis anos, talvez quinze, talvez oito ou sete, ou seis, ou de não ter idade, e lembro-me disso fazer sentido. (2007, p.41-44)

Como é visível, o verbo lembrar, que finaliza o fragmento, expõe o que poderíamos caracterizar como a tônica do romance. A busca de Miguel por Sara, ou Maria de Lurdes, torna-se uma demanda, semelhante aos romances medievais, em que os cavaleiros saíam em busca do Graal ou de suas donzelas sequestradas. Mas, antes de ser por uma pessoa, agora o que se busca é um passado que poderia ter sido e não foi. Como o verso de Manuel Bandeira, em Pneumotórax, “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”, Miguel é o personagem de uma “narrativa memorialista sem ressentimentos ou saudades” que, ao transitar pelos lugares de Moçambique, relembra os lugares, as pessoas e as imagens de um passado que ficou congelado no tempo e que é sua identificação.

O capítulo 11, um dos mais longos do romance, deixa transparecer através de um fluxo de lembranças, que jorram no discurso do narrador, a vida de Miguel. São imagens musicais, cinematográficas, esportivas, culinárias, visuais que buscam ordenar o passado do personagem.

Exatamente por essa ordem: a piscina do hotel, o fio de coqueiros e o pôr-do-sol. Há coisas que, um dia, têm de lembrar uma ordem, e essa ordem era a forma como o mundo se ordenava há muitos anos, quando existia paraíso. Porque, necessariamente, o paraíso não existe no futuro mas naquilo que se perdeu. Todos os paraísos são coisas perdidas, um rosto, uma casa, uma rua, um calendário, um som a meio da tarde, uma estação do ano, uma coisa que nos teria matado naquele instante preciso, naquele único instante. Todos os paraísos perdidos, mundos organizados apenas na nossa memória, num dia de que não se regressa como se regressa da morte ou de uma história de amor. Podemos esconder que regressamos da morte e que somos apenas sombras que atravessaram o rio de que se diz que os mortos nunca podem regressar, e podemos esconder uma história de amor durante anos, durante uma vida inteira, sujeitá-la a encontros clandestinos e a bilhetes trocados em segredo, as cartas que se escondem e a quartos de hotel onde se entra com outro nome. Podemos esconder a morte e o amor, a nossa morte e o nosso amor. Mas não podemos esconder mais nada. Não podemos esconder essa ordem que a s coisas tinham, há muito tempo, quando o paraíso se tocava com a ponta dos dedos, com uma ordem de voz, com um pedido, uma palavra, um nome. O paraíso é só isso. Um nome. E uma ordem das coisas. Essa ordem, exatamente essa ordem: a piscina do hotel, o fio de coqueiros e o pôr-do-sol. (2007, p. 103-4)

O processo narrativo utilizado por Francisco José Viegas desmonta os recursos de uma narrativa tradicional, misturando histórias e vozes narrativas que situam esse universo fragmentário de Miguel e nos permite verificar que este não está em busca de uma reconstrução do seu passado, ou à procura de reviver algo deixado para trás e que busca recuperar com tons de nostalgia – ainda que seja esse o tom caracteristicamente delineado na narrativa para os portugueses.  Eis aqui a continuação da Resenha Literária...
1 - Francisco José Viegas é ex-professor, jornalista, crítico literário e escritor multifacetado. Nascido em Vila Nova da Foz Côa, em 1962, publicou livros de poesia, romances, viagens, teatro, crônicas e guias. Suas narrativas são predominantemente policiais, gênero de sua predileção, cuja dupla de inspetores Jaime Ramos e Filipe Castanheira parodiam os grandes detetives das histórias tradicionais: Sherlock Holmes e Watson, de Conan Doyle ou Auguste Dupin, de Edgar Alan Poe. Também é divulgador cultural, responsável pelo programa de literatura Livro Aberto, exibido pela televisão portuguesa RTPN.
2 - Adenize Franco. Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – FFLCH/USP. Pesquisa: As ruínas da contemporaneidade: literatura e resistência emtempos de globalização.