quarta-feira, 4 de maio de 2011

O Besouro e a Rosa...

Mário de Andrade traz em O besouro e a Rosa a temática do subúrbio de São Paulo, inclinando-se sobre os desvalidos da sorte, movido pelo sentimento fraterno do cristão, pela solidariedade e pela crítica das estruturas sociais, conhecidas no expressionismo alemão. O humilde, o periférico, as vidas fora do brilho da metrópole, minguadas e medíocres despontam neste conto urbano.

O besouro e a Rosa dilata o alcance do cronista-jornalista, levando-o para as águas da efabulação, onde se transforma em narrador e personagem. No conto, o narrador encadeia a Lapa; monta o painel em que as personagens nunca são sujeitos da História que, para elas, se resume em cega engrenagem. A descrição do ambiente é, por se tratar de um conto, sem detalhes ou minúcias, ficando a cargo do leitor imaginá-lo e gradualmente construí-lo. As personagens, por sua vez, são criaturas infelizes, como no caso das tias solteironas com suas vidas monótonas e sem perspectivas novas, ou se tornam infelizes, como no caso da protagonista que ao perder a inocência fica obcecada pela idéia de não acabar seus dias solteira como as referidas tias.

Outra personagem que passa a vivenciar extrema infelicidade e amargura é o padeiro João, dada a não reciprocidade de Rosa em relação a seus sentimentos e, mais ainda, pela enorme decepção frente ao enlace entre sua amada e Pedro Mulato. A trama como é próprio de um conto, é objetiva seguindo o tempo cronológico e os pormenores se acumulam numa ordem lógica, de fácil percepção. O conto se divide em antes e depois do ataque do besouro, pois, após tal fato, a protagonista da trama passa por uma conversão, uma quase metamorfose na alma, onde os sentimentos antigos são sepultados e a outrora jovem inocente e apegada as tias passa a assumir uma nova personalidade ( imperativa, enérgica), bem como, uma nova maneira de enxergar as pessoas que a cercam, passando sobretudo a ansiar desesperadamente um futuro diferente do presente vivenciado por suas tias.

É importante mencionar que O Besouro e a Rosa provém das Crônicas de Malazarte, série de dez textos publicados na revista América Brasileira do Rio de Janeiro em 1923. Nesses textos, inclusive no que mais nos interessa nesta análise, o autor cria uma trindade para repartir a narração, com isso, desenham-se diferentes modos de ver, movimentando o foco narrativo que acaba por sair da esfera da tríade, para, com o narrador solidário, tingir-se no olhar e no discurso daqueles cuja história é captada. Malazarte e Belazarte, amigos íntimos, fazem a recriação do real na invenção e na fantasia. Belazarte é o cronista dos outros. Malazarte é o cronista de si e do tempo dele; subverte e imagina dentro da arte, reflete, teoriza. Malazarte e Belazarte apresentam maneiras de ver o mundo totalmente opostas, porém, numa coisa se igualam: na mentira. Belazarte é comprometido com as pequenas dificuldades do cotidiano, ilusionista no persuadir, conta o que não vê; Malazarte por sua vez, é mais analítico e conta o que julga ver, se mostrando, contudo, não raramente sarcástico e sem sonhos. O terceiro é aquele que concretiza o texto, o cronista, receptáculo das confidências de ambos”, experimentando distanciamentos e aproximações no duplo com que se envolve.

 Desse modo o conto comporta três pontos de vista, três linhas formadoras que seguem paralelas e às vezes se cruzam. Belazarte é aquele que conta oralmente para ter as histórias concretizadas no papel pelo cronista-narrador da ficção, e Malazarte, o que fala e é contado sempre dentro da discussão sobre a arte desdobrando o mundo do cronista-narrador e historiador jornalístico, possuem, os dois, no estrato fônico dos nomes, a palavra azar. Belazarte acusa a falta de saída das vidas pobres, o infortúnio inevitável, não se esquivando da dor conclui seus relatos negando a fórmula do conto de fada: “Rosa foi muito infeliz”.