segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

No país da filosofia II...

A França é um país onde praticamente não se escrevem livros introdutórios às diferentes disciplinas da filosofia. Mas isso não impede as pessoas de se entusiasmarem com uma boa polémica filosófica, como a que tem ocupado os principais jornais e canais de televisão franceses nos últimos dias.

A polémica surgiu a propósito do último livro de Michel Onfray, publicado na semana passada. Ainda o livro, intitulado Le Crépuscule d'une Idole: L'Affabulation Freudienne (O Crepúsculo de um Ídolo: A Efabulação Freudiana), não tinha saído e já soavam as trombetas a anunciar o escândalo. Onfray tem-se desdobrado nos jornais e televisões, queixando-se dos mimos com que o têm presenteado: fascista, anti-semita, maniqueísta de direita (parece que o problema é ser de direita porque chamar-lhe maniqueísta de esquerda não seria ofensivo) e outras tiradas ad hominem.

Para quem acompanha minimamente o ambiente intelectual no país da filosofia, isto até que nem devia ser assim tão surpreendente. Os intelectuais franceses (em França as coisas nunca se passam só entre filósofos, até porque os não filósofos são sempre um bocadinho filósofos) pelam-se por uma boa polémica que lhes permita aguçar o verbo e exibir a sua autoridade. O estilo quase heróico, contundente, e fanfarrão é muito frequente entre os "intelectuais" franceses. É por isso que as discussões raramente se ficam apenas por aí; transformam-se normalmente em polémicas. A polémica, diferentemente da discussão, assemelha-se mais a um desporto radical, com montes de adrenalina a saltitar. É também por isso que o grande público nunca regateia o espectáculo de uma boa polémica filosófica nos jornais ou na TV.

Mas o que diz Onfray de tão escandaloso, a ponto de suscitar tamanha polémica? Bom, num ambiente intelectual como o francês, só o título do livro já chega para justificar o escândalo. Onfray ousa tocar num dos nomes da santíssima trindade filosófica que caracteriza o universo intelectual e filosófico francês dos últimos cem anos. Houve tempos não muito distantes em que encontrar um filósofo ou intelectual francês que não fosse marxista, nietzscheano ou freudiano era mais difícil do que encontrar um padre ateu. Muitos eram simultaneamente marxistas, nietzscheanos e freudianos.

Ora, Onfray, diz ter lido tudo o que Freud escreveu, incluindo toda a sua correspondência, e concluiu que o fundador da psicanálise foi um brilhante impostor, que manipulou, distorceu intencionalmente e até inventou casos que nunca aconteceram. Considera que a psicanálise não tem qualquer carácter científico (eia, Onfray descobriu a pólvora!) e que se assemelha mais a uma religião com os seus sacerdotes obedientes ao papa fundador, sem esquecer a promessa de cura dos males das pessoas. Pior, Onfray defende que tudo começa no duvidoso carácter do seu fundador, que se considerava um génio da ciência só igualado por Copérnico e Darwin, mas que trabalhou e escreveu durante doze anos sob o efeito da cocaína em que se tinha viciado, que teve continuadamente relações adúlteras com a cunhada, que gostava muito de dinheiro, que era misógino e homofóbico, etc.

Onfray até parece ser um tipo simpático, com um discurso mais claro e articulado do que muitas das vedetas filosóficas francesas, sempre prontas a cantar de galo. Mas, ficamos algo perplexos com alguns dos seus argumentos, sobretudo quando o vemos queixar-se dos ataques ad hominem que lhe são dirigidos.

Enfim, no país da filosofia há "discussões filosóficas" assim.
 
Fonte: Crítica: revista de filosofia