domingo, 12 de dezembro de 2010

A Retórica do Amor...



                                                                                               Imagem Grethopes
Roland Barthes e a retórica do amor...  Aos estilhaços, intertextualidades e vozes, como em O Prazer do texto, o livro Fragmentos de um discurso amoroso (1977), de Roland Barthes oferece-se à leitura distraída do amor. O leitor, ao folheá-lo, escolhe múltiplas formas para caminhar entre os aforismos, entre os fragmentos, entre “as rajadas de linguagem, que lhe brotam graças a circunstâncias íntimas, aleatórias” (FDA, p.12)*

Nessa rede de “dis-cursos” ou vozes romanescas tudo, no livro, surge como “algo que se leu, ouviu, experimentou”. (FDA, p.12). “Pouco importa, no fundo, que a dispersão no texto seja rica aqui e pobre ali: há tempos mortos, muitas figuras modificam-se; algumas, sendo hipóstases de todo o discurso de amor, possuem a própria raridade - a pobreza - das essências: que dizer da Languidez, da Imagem, da Carta de Amor, uma vez que é todo o discurso de amor que está tecido de desejo, de imaginário e de declarações?” (FDA, p.12-13).

No “inexprimível amor” é pois um apaixonado que fala e diz: “querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem: esta terra de loucura em que a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco excessiva (pela expansão ilimitada do eu, pela subversão emotiva) e pobre (devido aos códigos com os quais o amor a rebaixa e avilta)”. (FDA, p.128-130).

A escrita da paixão, composta de várias outras escrituras e fragmentos, no livro comporta e se inscreve em estratégias de espetáculo do/sobre o amor, seus riscos, glórias, seus lugares-comuns e esquizofrenias, concebida para ser feita em uma situação análoga ao apaixonado. Nesse jogo discursivo do amor entre a forma e o conteúdo, entre desafios e alegrias dos atores, que se garante o espetáculo amoroso.

Apesar de não ser um texto dramático, Roland Barthes (1915-1980), propõe uma semiologia dramática do amor para apresentar a sua “enunciação” (é ele que o define, enunciação e não análise) do discurso amoroso. O livro, como um diário da paixão, inicia com a seguinte frase: “é pois um apaixonado que fala e diz”, e, até ao final, percebemos de fato surgir em palavras, numa estrutura quase cênica, aquilo que todos já viveram - “o elogio das lágrimas”, “o ciúme”, “Que fazer?”, “O coração”, “A ressonância” e outros.

Arrumados assim, feito verbetes lúdicos de um dicionário do amor, o livro, contraditoriamente, tenta extrapolar esse discurso instaurando o amor pelo viés semiológico da leitura literária, pela vida, pela imaginação, pela linguagem que assume vários caminhos. Talvez, porque, o viés amoroso seja o que faz as pessoas se moverem e acreditarem em alguma coisa.

Por outro lado, os estilhaços de textos, feito um homem diante de um espelho, recuperasse em fragmentos constantes. Fragmentos de desejos, de realizações, de percepções. O homem diante da iniciativa de se autobiografar no discurso ou nos discursos do amor do outro. Como em Roland Barthes por Roland Barthes (1977), livro também escrito em fragmentos, Fragmentos de um discurso amoroso assinala a tentativa perturbadora, mas persistente, de dar voz a um coração que se descobre vazio.

Entre verbetes e significâncias do amor, o leitor, diante de vários enxertos, deve-se perceber como mais um personagem de romance e deve se permitir brincar, uma brincadeira séria de quem está submerso no texto, na linguagem, atento às armadilhas do sentimento e do discurso amoroso. Assim, Fragmentos de um Discurso Amoroso é, além de o “valor passado ao grau suntuoso do significante”, também uma experiência de leitura. Um prazer absoluto diante do texto e do homem que nele se mostra. “Escrever por fragmentos: os fragmentos são então perdas sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (BARTHES, 1977, p.108).

O amor como desejo e representação presente nos fragmentos barthesianos, não se esgota nas palavras, nem se refere a realidade como tal. O discurso amoroso e romanesco, ao colocar-se como literatura e crítica semiológica ao mesmo tempo, libertasse das imposições da lógica tradicional e adquire a liberdade de estruturar-se segundo seus códigos. O texto barthesiano é algo feito com a linguagem, portanto a partir da linguagem, algo ao mesmo tempo a transforma, acresce, aperfeiçoa, interrompe ou a reduz. É vivo e desejante.

O leitor, acompanhando vertiginosamente o texto do amor, vai entrar em diálogo com a escritura, produzindo outra escritura (como esse ensaio). É, segundo o semiólogo francês, o lugar em que o texto ou discurso do amor se reescreve ao ser recebido e interpretado. O diálogo é uma escritura onde, segundo Bakthin, se lê o Outro. O diálogo bakthiniano designa aos olhos dessa escritura simultânea, como subjetividade e como comunicabilidade, ou melhor, como intertextualidade, um diálogo amoroso cujos actantes são outros textos.

A noção de sujeito amoroso da escritura começa a dar lugar a uma outra, a da ambivalência da escritura. Nesse sentido, Fragmentos do Discurso Amoroso é um texto em constante destruição onde se esconde/desvela o jogo do signo. O deciframento estilhaçado, como fragmentos metalingüísticos, aparece ao leitor como uma escolha. O discurso do amor, sempre à deriva e instigador, só existe a partir de uma recriação numa leitura subjetiva e individualíssima. A cada fruidor o livro despedaçado apresenta-se diferente de si mesmo, ao mesmo tempo completo e incompleto, pois “os signos não são provas, pois qualquer pessoa os pode produzir, falsos ou ambíguos. Daí resulta depreciar-se, paradoxalmente, a omnipotência da linguagem: uma vez que a linguagem nada garante, tomarei a linguagem por única e última garantia: não acreditarei mais na interpretação”. (FDA, p.234).

Nesse plano ou palco do amor, Fragmentos de um discurso amoroso (espécie de "miseen-scéne" amorosa) é um texto de objeto de prazer que está constantemente estruturando-se, mantendo-se num estatuto da enunciação amorosa de seus leitores.

Essa estruturação infinita do discurso, Barthes chama de significância - espaço específico onde se redistribui a ordem da língua - faz-se sensorial: o sentido das coisas, essencialmente da palavra amorosa, nasce de nossos sentidos, é sentido produzido sensualmente, o corpo e sua vivência, fragmentação da cultura, disseminação amorosa de suas características segundo fórmulas desconhecidas e virulentas.

Na "escritura-leitura do amor", "quem pretende a verdade só e encontra respostas com imagens fortes e vivas, que se tornam ambíguas, flutuantes quando as tenta transformar em signos: como em toda mântica, o cosultante apaixonado deve criar a sua própria verdade" (FDA, p.234). Nessa brincadeira de discursos, nos fragmentos justapostapostos, e em forma de palimpsesto, nasce um novo texto. Um texto múltiplo do amor, uma constante busca de significações já que " a função da escritura é colocar a máscara e, ao mesmo tempo, apontá-la". (BARTHES, 1974, p.136)

Feito o conto Amor, de Clarice Lipector , Barthes cria o discurso ou recorta fragmentos de amor em que o personagem depreende-se do mundo e experimenta a perda do eu. Em constantes buscas internas dos personagens no discurso imagético do amor, tanto Ana, como também outras vozes e o leitor, caracterizam-se pelo desdobramento do eu que se vê no ato de produção, ator e espectador de sei mesmos, sujeitos do espetáculo e objeto de gozo, captando uma consciência em fracionamento pela dissolução do eu nos vários fragmentos.

Eros-cupido capta, em Clarice, a protagonista do conto na alegoria do cego, enquanto Barthes, no espaço do discurso amoroso, faz do leitor rodopios de perda e busca, reencontro na linguagem da obra. Enamorados, Ana, do conto Amor e os leitores de Fragmentos de um discurso amoroso ficam encantados com as máscaras do discurso que ora se esconem, ora se revelam. O mundo e os signos amorosos são descobertos pelos seus avessos, o irreal e o mágico o reelaboram.

Nessa poética em fragmentos, com extrema delicadeza dos signos, Roland Barthes propõe uma aventura semiólogica em torno do amor que se dedica a desfazer o "tecido" amoroso para montar como nele se superpõem na escritura palimpsêstica os diversos códigos e os seus sentidos. O mundo semiológico do amor, fragmentado e intertextual, carente de entranhas. Ler o mundo dos signos e dessas entranhas amorosas, portanto, é conseqüentemente, ter as "chaves" desse código. Na perspectiva semiológica, ler e escrever o amor, como o ato de leitura em Barthes, são de tal sorte, momentos simultâneos de uma mesma ação semiótica.

A leitura comparada a um ato de amor, merece ou requer, como o ser amado, atenção, carinho, cuidado. A criação é um caminho para se chegar até o outro, para compartilhar sentimentos, experiências amorosas, sonhos, enfim: para compartilhar a vida. Por esse motivo a linguagem foi comparada por Bathes à experiência amorosa, quando ele diz: “a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem contra o outro. É como se eu tivesse ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contacto: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que ‘é eu te desejo’, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir ( a linguagem tem prazer de se tocar a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho este contato, esgoto-me ao fazer o comentário ao qual submeto a relação.” (FDA, p. 98).

Escrever, para Barthes, "é colocar-se num imenso intertexto, quer dizer: colocar a própria liguagem, a sua própria produção de linguagem, no próprio infinito da linguagem”. (BARTHES, 1975, p.15). A noção de escritura amorosa barthesiana e os seus efeitos de textualidade advém, pois, dessa concepção sinuosa e à deriva, mas extremamente insinuante e reveladora. Tudo sugere um texto que pulsa e, sob a pela da linguagem amorosa, o texto-mundo deseja vorazmente. A leitura dos fragmentos, ao acompanhar a trajetória intertextual e labiríntica do discurso romanesco, lança-se na aventura semiológica da escritura barthesiana, habitando com o corpo vários discursos ficcionais, atendendo aos apelos dos signos literários.

Barthes, transgressoramente, nesse livro, parece estar no limiar de um romance, "ele toma, literalmente, notas para um romance que não escreveu, notas que são ao mesmo tempo a transcrição do seu livro que, afinal, não é um romance". (CALVET, 1993, p.244).

O que faz do livro uma espécie de metalinguagem do amor, "uma prática de imitação, de cópia infinita" (BARTHES, 1975, p.14). "[...] uma espécie de carrocel de linguagens imitadas. É a própria vertigem da cópia, devido ao fato de as linguagens se imitarem sempre uma às outras, de a linguagem não ter fundo, de não haver um fundo original da linguagem, de o homem estar perpetuamente embaraçado por códigos de que nunca atinge o fundo. A literatura é, de certo modo, essa experiência" (BARTHES, 1975, p.16).

De fato, tudo sugere o tempo todo as indagações: quais serão os códigos do amor? Haverá uma linguagem do amor? Barthes-escritor, combinando citações e suprimindo aspas parece confirmar que "não se copiam obras, copiam-se linguagens" (BARTHES, 1975, p.22). Na linguagem dos enamorados como seres solitários e incompletos, o discurso do amor surge como sentimento incompreensível. O livro, através de inúmeras citações e exemplos do tema confirma que é como o próprio ser amado descrevendo-se: lê-lo é conhecer o desconhecido eternamente. "[...] tudo se representa, pois, como uma peça de teatro". (FDA, p.133)."O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim (nada para lá da imagem)" (FDA, p.170).

Em cada verbete, o sujeito do discurso amoroso registra as angústias mais veementes de um coração apaixonado e nos faz refletir acerca de ações banais, como a espera de um telefonema (ou a dúvida quanto a ligar ou não), o ciúme inexplicável que sentimos a ver um terceiro falando do nosso ser amado ou simplesmente o delírio da paixão amorosa.

Ciúmes, posses, discursos, signos, o desejo amoroso - trata-se de um livro para quem ama poder amar ainda mais. Para quem amou, sentir saudades e querer amar novamente. Ou para quem ainda desacreditado no amor, queira um dia voltar a amar, mas que não se contente com qualquer amor, e sim procure um amor ao menos parecido com aquele descrito por Barthes. "Os signos do amor alimentam uma imensa literatura: o amor é representado, reposto numa ética das aparências". (FDA, p.145).

Gozo da palavra romanesca, gozo por articular significantes - ao lado da leitura barthesiana que desvenda sentidos, gozo de criar, de reinventar o objeto do prazer, o prazer do texto, o prazer de ler, o prazer de amar puro e simplesmente!


Notas:
* todas as citações foram alusão a abreviatura FDA - Fragmentos de um Discurso amoroso.

Por Rodrigo da Costa Araújo

Fonte: Intenet doc pdf