terça-feira, 14 de setembro de 2010

A - O REINO DO DINHEIRO

Está ligado à submissão cada vez mais clara de todas as nações à lei do mercado mundial, produzida pela vitória da racionalidade instrumental. Com efeito, o que triunfou a partir do século XIX e, de maneira mais evidente ainda, ao longo do século XX, não foi a racionalidade do homem tal qual fora vislumbrada no século das Luzes e pela Revolução Francesa, racionalidade dos fins últimos e dos valores irrigados pelos sentimentos e pelas paixões, tal como nos ensinaram Rousseau e Goethe, mas somente a racionalidade instrumental, aquela que se interessa apenas pelos meios a serem utilizados e que responde só à questão: como? Jamais à questão: por quê? Essa predominância se traduz pelo surgimento apenas da racionalidade econômica, aquela que permite o cálculo dos melhores meios e dos melhores métodos, cálculo de custos e de vantagens, e que submete todo mundo ao reino do dinheiro.

Essa racionalidade deformada, limitada, sinaliza o advento de uma forma de pensamento e de um estilo de ação perverso, já antecipado no século XVIII pelo marquês de Sade, ao dizer que, se o homem fosse totalmente livre, seria livre para se vender, conduzido à “venalidade generalizada”. E que, se todos os homens fossem iguais, alguns poderiam usar o seu poder e a sua riqueza que são desigualmente distribuídas para intimidar outros, para rebaixá- los ao nível de objetos, para usá-los como instrumentos de seu próprio gozo.

De certa maneira, podemos afirmar, sem risco de sermos contraditados, que o mundo atual se tornou sádico. Os antigos valores de mérito, trabalho, honra, prestígio e “a herança histórica, usada pelo capitalismo, inclusive a honestidade, a integridade, a responsabilidade, o cuidado no trabalho, o respeito aos outros” (Castoriadis, 1996), foram desvalorizados em prol de um único valor: o dinheiro.

“Tudo se compra e tudo se vende.” O axioma de L. Walras é o de nossa sociedade, de onde deriva a possibilidade de corrupção generalizada, tanto dos grandes como dos pequenos, comportamento perverso por excelência. Um novo impulso foi dado a essa tendência pela predominância contemporânea das estratégias financeiras. O dinheiro deve criar dinheiro, de acordo com a necessidade, sem passar pela mercadoria, e assim criar novas riquezas, passando por cima das estratégias industriais que visam o desenvolvimento. Assiste-se a um aumento contínuo das desigualdades internas e externas, a um papel preponderante dos acionistas e dos titulares de fundos de pensão em relação àquele dos administradores e trabalhadores; à globalização das trocas que beneficiam essencialmente aos países ricos – que sabem como se proteger quando lhes parece necessário; aos avanços tecnológicos dos países já desenvolvidos (as outras nações se encontram em situação de dependência crescente, apesar das resistências), que se tornam instrumentos das grandes potências. A guerra econômica se intensifica a cada dia.

Conseqüências ao nível coletivo: dissolução do vínculo social, exclusão ou “desvinculação social” (R. Castel, 1995), competição exacerbada, pilhagem do planeta, enfraquecimento dos movimentos sociais, diminuição das lutas sindicais, e, por outro lado, importância crescente das empresas, que querem ser “as instituições divinas”, e de suas conseqüências ao nível individual: os indivíduos devem se integrar, ou melhor, se identificar às organizações das quais fazem parte, idealizá-las, colocando os valores organizacionais – seu próprio ideal do ego – no lugar dos seus próprios

valores, transformar-se em instrumentos submissos, dóceis mesmo, e sobretudo acreditar, se lhe disserem e se eles se sentirem responsáveis enquanto sujeitos, que estão a caminho da autonomia. É a psicologização dos problemas que se coloca em prática. Uma instituição e uma organização não são menos organizadas ou geridas dentro dessa concepção. Se elas fracassam, é sempre ao indivíduo que a responsabilidade é imputada. Assim, os indivíduos estão sempre em situação de prova, em estado de estresse, sentem queimaduras internas, tomam excitantes ou tranqüilizantes para dar conta da situação, para ter bom desempenho, para mostrar sua “excelência” (entramos numa civilização de dopping); e, quando esses indivíduos não são mais úteis, eles são descartados apesar de todos os esforços despendidos. O homem tem, cada vez mais, a solidão como companheira. Ele pode se transformar em alguém “inútil ao mundo”, para retomar uma velha expressão da Idade Média, um excluído definitivo,

sem esperança de um dia voltar a ser “incluído”. No século XIX, as pessoas que formavam o “exército de reserva do capital” eram excluídas temporariamente do processo produtivo, mas sabiam que um dia poderiam voltar a fazer parte do grupo de incluídos, o que não é o caso atualmente. Para dizer algo sobre o futuro, que parece bem sombrio a esse respeito, as novas tecnologias favorecem a eliminação de milhares de pessoas no mercado de trabalho.

A racionalidade instrumental e as estratégias financeiras atingem, pois, o objetivo: utilizar o sujeito, que acredita ser em grande parte autônomo, para superexplorá-lo e aliená-lo. O processo de alienação é tão mais insidioso que muitas pessoas colaboram com a própria alienação. Tornam-se utensílios manuseados pelos dominantes no alto de sua potência. Estes últimos tornam- se cada vez ou mais perversos ou mais paranóicos porque têm o gosto pelo poder desmedido. A perversão pode, aliás, assumir duas formas:

a) uma forma ativa, na qual o perverso utiliza, com gula, os demais para torná-los dependentes e submissos, e contribuir à sua própria servidão e humilhação;

b) uma forma passiva, a apatia, tal como já observada no século XVIII por Sade. O apático é um indivíduo que não sente nenhuma emoção. É insensível, e vê os demais apenas como “coisas” abstratas, que podem, portanto, ser eliminadas física ou psiquicamente, se necessário, sem que ele se sinta nem alegre nem incomodado (esse tipo de pessoa se desenvolve em nossas sociedades, que dizem que os chefes não devem ter “états d’âme”,** e devem apenas fazer o seu trabalho da maneira mais perfeita). Esses indivíduos (paranóico, perverso ativo, perverso apático) são naturalmente hostis às pessoas desviantes, não-conformes, aos sujeitos que pensam que são “causa de si”, como indicou M. Enriquez (1984). O mundo atual tende a tornar-se o do crescimento do desprezo, da generalização da desconsideração, do desrespeito, da recusa da diferença a que tem direito todo ser humano.