terça-feira, 14 de setembro de 2010

O HOMEM DO SÉCULO XXI: Sujeito Autônomo ou Indivíduo Descartável...

                                                     Estatua da autonomia, Funchal
Por que escolher um tema como esse: simplesmente porque o vínculo social, no momento atual, se desfaz cada vez mais rapidamente e porque vemos aumentar uma violência que não é a violência fundadora do direito, nem a violência necessária às relações humanas (Kant notou que, sem discordância, seríamos apenas carneiros balindo), mas uma violência por excesso, um mal radical elementar, como diria Levinas, que visa suprimir não somente o indivíduo, mas o sentido, fazendo com que nada na vida tenha sentido.

Já antes da Segunda Guerra Mundial, Freud e Valéry nos preveniram. Em O mal-estar da civilização (1930), Freud notou que nós, nas sociedades ocidentais, tínhamos chegado a um nível de “tensão intolerável”, tensão política e psíquica, e que a humanidade seria capaz de se destruir definitivamente, de forma que aquilo que lhe havia permitido progredir tornar-se- ia a causa de seu desmoronamento. Paul Valéry, por seu lado, em suas Reflexões sobre o mundo atual (1945) sublinhava o fato de que “as civilizações sabem que são mortais” e a tendência das sociedades européias a renunciar à sua missão.

Acrescentamos duas frases mais recentes: a primeira, de Georges Bataille: “A humanidade inteira está ameaçada a reduzir-se a um imenso sistema de escravidão para todos”; a segunda, de D. Rousset: “Os homens normais não sabem que tudo é possível”.

Proponho, pois, uma visão trágica da vida, não para nos deixar invadir pela fatalidade, mas para examinar lucidamente se uma outra via é possível, se podemos fazer prevalecer a civilização, apesar das ambigüidades, sobre a barbárie. Partimos de uma constatação:

1. De um lado, a partir do século XIX, com o discurso sobre a emancipação e o progresso humano, e mais particularmente durante todo o século XX, vimos se afirmar a idéia de que o indivíduo devia e podia tornar-se um sujeito autônomo, sujeito histórico (como disse Walter Benjamin: “Todo indivíduo é um ser histórico”), sujeito de direito, sujeito psíquico e sujeito moral, portanto, sujeito de suas ações.

Pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, o homem é reconhecido, na sua eminente dignidade, como tendo direito a ter direitos.

Vou traçar rapidamente essa emersão do sujeito.1 O sujeito histórico, ou seja, aquele que intervém no nível político, que contribui para definir a orientação da sociedade e que participa diretamente das decisões essenciais relativas à vida e à morte, apareceu na aurora do século V a.C., em Atenas.

O cidadão (é certo que algumas pessoas não eram consideradas como tal: os escravos, os imigrantes, as mulheres, as crianças) utilizava sua liberdade para tomar parte ativa, se desejasse, do funcionamento da comunidade. Todos os cidadãos têm o mesmo direito à palavra e devem ser ouvidos no espaço público do debate, ainda que sejam os sofistas que cativem a atenção por mais tempo. Se, após o desaparecimento da democracia ateniense, esse tipo de sujeito apagou-se (a tal ponto que La Boétie pôde se perguntar se não existiria um desejo de submissão, uma servidão voluntária, permitindo ao “Um” governar, sem freios, todos os demais) durante os períodos feudais e monárquicos, ele reaparece na Inglaterra quando do estabelecimento da Bill of Rights (Carta de Direitos) e das revoluções Americana e Francesa. É certo que nem todas as pessoas receberam, imediatamente e sem resistências, os atributos da soberania (as mulheres, na França, tiveram direito ao voto apenas em 1945), mas progressivamente os diversos segmentos de uma nação puderam intervir no debate público e influenciar o caminho da nação na direção que eles consideravam a melhor.

Para que o indivíduo pudesse tornar-se um ser histórico, foi preciso naturalmente que ele se tornasse um ser de direito, ou seja, alguém que desfrute de direitos (direitos políticos, direitos civis e, mais recentemente, direitos sociais) e sobretudo que seja reconhecido como tendo o direito, como ser humano e como cidadão de um país, de gozar da totalidade dos direitos acordados (ou arrancados) ao conjunto dos cidadãos nacionais ou ao conjunto dos homens residentes num território. O sujeito de direito é, pois, um indivíduo considerado, respeitado frente a todos os outros e que está sob a proteção de uma lei semelhante para todos.

É o direito que funda a liberdade real dos homens, como pensava Rousseau. Sem o direito, cada um estaria à mercê do arbítrio do tirano, do Estado, da casta ou da classe. Mas não se trata apenas de usufruir o direito. Ser um sujeito de direito significa, igualmente, assumir-se como um ator no
estabelecimento das leis (seja diretamente, seja por intermédio de representantes) e agir ativamente para fundar e refundar a lei e para fornecer ao âmbito legal, assim formado, as suas fontes de legitimação. O sujeito de direito é constituído lentamente no debate contínuo contra as formas de dominação e, na maior parte do tempo, se consolida por meio de ações coletivas exemplares, que mostram sua força. Assim, não se pode esquecer que no fundamento do direito reside sempre a força, mas uma força que tende a se negar, visto que está na origem das obrigações sociais e da armadura jurídica nas quais se funda.

O nascimento do sujeito psíquico é mais recente. É à psicanálise que o homem moderno deve não apenas a descoberta crucial do inconsciente e, portanto, de sua divisão estrutural, mas sobretudo do reconhecimento em si de uma atividade psíquica intensa e contínua (que não se reduz às faculdades cognitivas), outorgando um grande lugar ao jogo das pulsões, dos sentimentos, dos desejos, das fantasias e dos processos de recalque, de idealização, de projeção, etc., que animam tanto a vida dos indivíduos como a do socius. Ser reconhecido como sujeito psíquico é ser respeitado em seu fórum interior, no seu trabalho de pensamento, na sua atividade de sublimação, ser protegido das “mortes psíquicas”, realizadas pelos adversários que são, às vezes, os pais, e aparecer como “o mais insubstituível dos seres”, dando às imagens de intimidade todo o seu vigor. Reconhecer-se como sujeito psíquico é, por outro lado, aprender a se defender da fantasia da dominação total (o famoso “mestre e dono da natureza”) e se perceber como um indivíduo clivado, submetido à perda, à falta, ao trabalho de luto e ao sofrimento, dívidas a pagar para poder realizar, pelo menos em parte, o programa do princípio do prazer. O sujeito psíquico é, assim, um ser que reconhece as suas contradições e os seus conflitos, sabendo que não é totalmente senhor de sua própria casa pelo fato de existir o inconsciente, submetido à vacilação e ao medo do despedaçamento, mas capaz de fazer de suas falhas o trampolim para chegar à posição de sujeito humano e de sujeito social, estando ambos intimamente ligados, providos de uma membrana protetora (de um “eu-pele”, conforme D. Anzieu) e capazes de abrir-se ao mundo. Pode-se, pois, concluir que o homem está no caminho de sua autonomia, de ditar a si mesmo as próprias regras e de ter uma visão otimista do futuro. O homem não teria mais necessidade de grandes transcendentes para conduzir a sua própria vida.

2 . Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, vê-se surgir três problemas fundamentais:

a) o reino do dinheiro, tornado um fetiche sagrado;

b) o aumento do poder do Estado;

c) um “retorno” identitário* ao grupo a que se pertence, e crença nos seus fundamentos.

Vou tentar ser mais preciso sobre esses três pontos e ver em que medida essa evolução favorece a evolução da autonomia do sujeito ou, ao contrário, a sua submissão ainda mais forte. A partir disso, tentarei verificar a possibilidade de algumas portas de saída.

Por: Eugène Enriquez, Université Paris VII
Fonte: Internet, doc pdf

Abaixo segue os três problemas fundamentais: