terça-feira, 14 de setembro de 2010

C - OS RETORNOS IDENTITÁRIOS

Contra todas as formas de violência (do dinheiro, do Estado), contra esses “monstros frios” (na expressão de Nietzsche), o que é possível instaurar para se recriar um mundo caloroso, agradável, e viver, no qual cada um possa ser reconhecido? Dois tipos de reações podem ser aventados.

Uma reação no nível coletivo Muitas pessoas tentam reencontrar suas raízes. O tema “enraizamento”, caro a Simone Weil, retoma o seu vigor. Ele se traduz por um interesse, e às vezes por uma idealização, do regional, do local, do grupo a que se pertence. Retorno a terra, às músicas e à linguagem local. Na França, percebe-se a importância dada pelos bretões e pelos corsos à utilização da língua deles, à promoção de seu reduto e à sua música popular; retorno a alguns costumes, modos e danças de antigamente. Trata-se de reencontrar um convívio, o prazer de estar junto, de conversar longamente, de afirmar sua diferença cultural, assim como os afro-americanos e os afro-brasileiros podem reconquistar uma dignidade que perderam. Trata-se de uma reação normal e sã que tem por objetivo restaurar um mundo passível de ser vivido entre irmãos e irmãs. Entretanto, essa reação envolve perigo, pois engendra perigos essenciais, tais como o retorno aos nacionalismos mais virulentos, por exemplo, o nacionalismo albanês ou sérvio, para não falar dos nacionalismos da África negra, que se traduzem pela eliminação e pelo massacre (Ruanda) de populações inteiras; a renovação dos integrismos religiosos, a proliferação de seitas, de comunidades fechadas (dos guetos), gangues de bairro etc.; enfim, um “espírito de corpo” pervertido.

Se é importante respeitar as diversas culturas, como Lévy-Strauss sublinhou em Race et histoire, no qual demonstrou que nenhuma cultura pode se orgulhar de superioridade em todos os domínios sobre outra, é essencial também que os povos não se refugiem em comunidades que se querem estáticas. O comunitarismo afasta os homens uns dos outros, e pode fazer renascer aquilo que Freud (1930) chamou de o “narcisismo das pequenas diferenças” e que G. Devereux (1972) julga em termos severos: “Se a gente é apenas um capitalista ou um proletário, um ateniense ou um espartano, a gente está bem perto de não ser grande coisa ou mesmo coisa alguma”. Uma reação no nível individual. Vêem-se cada vez mais pessoas que se voltam à sua própria identidade, que cuidam apenas de “si”, de sua vida privada, de seus investimentos cotidianos, de sua família. O homem, então, não se sente mais fazendo parte de uma espécie humana e não participa mais do trabalho da civilização. Considera os outros apenas obstáculos ou objetos de prazer.

Ademais, à força de ser só e responsável, o homem acabou por considerar seu eu “como um fardo”, conforme observado por R. Sennett (1974). Ele está cansado de si mesmo (A. Ehrenberg, 1998) e se torna desamparado e deprimido, motivos para recorrer às drogas para manter-se de pé e ter o sentimento de ser criativo. O estresse permanente que assalta os atores sociais lhes impede de serem criativos (desenvolvimento do conformismo), e eles acabam por mergulhar na mediocridade, na “insignificância” (Castoriadis, 1996), sinais incontestes da barbárie e de uma incapacidade para a transgressão.

Se se reconhecer como sujeito é essencial, ver-se apenas como um individuo indiferente aos outros e ocupado apenas com suas próprias preocupações é simplesmente mortífero.

Existe uma saída? Pode-se reconstituir o vínculo social?

Scott Fitzgerald dizia: “É preciso saber que o mundo é sem esperança e, contudo, decidir mudálo”.

Eu gostaria de retomar igualmente um verso do poeta alemão Hölderlin, do qual gosto muito: “Lá onde crescem os perigos, cresce também a salvação”.

Atualmente as pessoas são cada vez mais capazes de fazer o diagnóstico que acabo de apresentar. Podemos assinalar os sinais positivos: a família se reconstrói, mesmo que o faça com mudanças. Não se proclama mais a morte da família, como em 1968. Ela é, apesar de tudo, um lugar de calor e de intimidade. Surgem numerosas associações (os “restos du coeur”,*** as ações contra o desemprego, direito à habitação, as redes SOS de amizade, etc.). Os grandes discursos ideológicos desapareceram. Fracassaram porque se tornaram mortíferos.

Mas esse desaparecimento não impediu, apesar de tudo, a aparição, há alguns anos, de movimentos sociais engajados, nos quais os objetivos não são sempre precisos, mas que questionam a sociedade atual. É certo que não é possível dizer precisamente quais serão as conseqüências de suas ações. Isso não impede que esses movimentos existam e que já se façam ouvir. Progressivamente, as pessoas se põem a dizer que não querem mais um Estado totalitário e que tampouco querem um Estado liberal que não se preocupe mais com a proteção social. Querem um Estado de outro tipo, que exponha os problemas em sua nudez, tentando resolver as questões urgentes, consultando as populações e levando em conta suas opiniões, e não seja um Estado estritamente gestor. Existe, pois, uma demanda pela formulação de novos ideais que não são grandiosos, mas que também não são puramente ideais de gestão. Ademais, como se sabe que não se pode pedir tudo ao Estado, vêem-se ações assumidas cada vez mais por grupos e associações (anti-racistas, auxílio aos clandestinos, de socorro aos carentes, etc.).

Estamos assistindo a uma lenta mas real renovação da sociedade civil. Esse é um ponto extremamente importante. Não se pode pedir tudo ao Estado, então é preciso pôr as mãos na massa, tanto individual quanto coletivamente. O indivíduo não deve se perder no coletivo, deve manifestar

plenamente sua individualidade e ao mesmo tempo trabalhar com os outros para construir alguma coisa. Nada pode ser feito sem envolvimento individual forte nas ações políticas, que são pensadas, discutidas. E as pessoas começam a crer. Um outro ponto que me parece muito importante é a renovação da noção de ética. Falou-se muito de ética nos negócios. Não creio nela, e ela é perigosa, pois se trata mais de uma deontologia do que de ética, mais uma prescrição do que propriamente princípios reguladores. Mas a preocupação ética torna-se importante em todos os lugares, não somente nos comitês de bioética ou na vida das empresas, mas na vida de cada um de nós. Atualmente nos recolocamos algumas questões fundamentais que eram ocultadas.

Eu gostaria de citar algumas delas, em particular as questões enunciadas por Max Weber: o que é a ética da convicção ou a ética da responsabilidade? Até que ponto podemos ter convicções sólidas e discutir fortemente a partir do que pensamos, e ao mesmo tempo nos sentir responsáveis pelas conseqüências de nossas ações? Podemos também nos interrogar sobre o fato de que, mesmo que tenhamos convicções estabelecidas, elas não são necessariamente justas, e que, pois, é preciso colocálas à prova da comunicação e da discussão. É por isso que parece muito importante que se desenvolva o que Habermas chamou de ética da discussão (1983). O importante é que as pessoas tenham o máximo

possível de informações, e que possam discutir no espaço público para permitir que os problemas sejam verdadeiramente tratados. Estamos longe disso. A informação que temos não é nem total nem pertinente. Porém, a demanda por informação aumenta.

O indivíduo começa a perceber que não é apenas à base de estimulantes que ele pode encontrar saídas, que não é somente adotando todas as próteses possíveis que ele pode se adaptar, mas que é principalmente se interrogando sobre as suas capacidades, seus limites, sua mortalidade, individualmente e com os demais. O indivíduo então se confessa capaz de um trabalho de luto, de um trabalho de interrogação, que pode levá- lo a analisar-se, a trabalhar o seu “fórum interior”, não para fazer análise pela análise, mas para tentar saber por que faz tal coisa e que sentido lhe atribui. É dizer que retorna de maneira fundamental a algo que estava em vias de desaparecer: a questão do sentido. Os seres humanos são seres em busca de sentido. É a definição fundamental de ser humano e ser social. De outro modo, seríamos apenas animais totalmente programados.

Os sujeitos se dão cada vez mais conta da identidade dos problemas com os quais se defrontam. São capazes de começar a se interrogar. É necessário que haja pessoas que possam ajudá- los a analisar o que estão fazendo, a fim de que possam pensar novos projetos, construir novas instituições, transgredir as regras que não valem nada e guardar aquelas que valem algo, retomar o que haviam esquecido, fazer experimentação social e, talvez, um dia formar um novo paradigma social e humano.

Esse paradigma implicaria ter-se maior consideração pelos outros. Atualmente nos perguntamos: “Em que consiste a dignidade do ser humano? O que é o respeitar o ser humano?” Existe um esforço nesse sentido. A renovação da ética, a emergência de um desejo de reencontrar a alegria em trabalhar e em viver junto, o desejo de amizade, de convívio pode reconstruir o tecido social (Freud viu isso): é o amor mútuo (a libido associativa), que está no fundamento do vínculo social, e não somente a morte mútua. É graças a ele que se pode vislumbrar o “enfraquecimento do Estado”.

Existem em nossas sociedades muitas mortes, mortes físicas, mortes psíquicas, mas é o amor – seja como amor total, seja como ternura, amizade, camaradagem, solidariedade, fraternidade – que deve nos animar. É preciso pensar não apenas na liberdade e na igualdade. A fraternidade é também alguma coisa de essencial. É a percepção real de que as sociedades não podem se fundar nem perdurar se não desenvolvem um mínimo de prazer, até o regozijo de estar junto. Eu diria que é preciso reinstaurar o que Freud dizia: é preciso, mesmo assim (e é muito difícil), poder seguir o programa do princípio do prazer. E, naturalmente, a realidade é sempre contra. Mas o programa do princípio do prazer é, levando em conta a realidade, tentar se reconhecer mutuamente, fazer as coisas junto, e me parece que as pessoas mais mortíferas, sempre mais numerosas, já começam a desencantar um pouco.

O vínculo social não se construirá a não ser que queiramos construí-lo, e se esse desejo for compartilhado por um grande numero de pessoas. O voluntarismo, naturalmente, não é suficiente, mas sem ele nada é possível. A revolução não pode ser feita em um dia, mas se faz todos os dias nas relações cotidianas que mantemos, como já pensava W. Reich. E aí está a entrada para um convívio verdadeiro, a edificação de uma democracia que mereça esse nome, na qual o amor e a alegria estejam e continuem a estar presentes. Resta, pois, trabalhar nesse projeto, tentando afastar as tendências mortíferas (sempre reconhecendo-as, pois a pulsão de morte é sempre operante), e fazer triunfar, tanto quanto possível, o prazer e o amor mútuo. Isso pode parecer utópico, mas como eu já disse tempos atrás: “As sociedades que não sonham são sociedades que morrem”. Certamente a divisão originária não cessará, e é importante que permaneça para lançar os movimentos sociais, instituir os desejos. Caso contrário, há o risco de recriar as sociedades “holistas”, fusionais, sem conflitos e sem contradições. De qualquer forma, é preciso lembrar do conselho de Maquiavel: “E muitas se imaginaram repúblicas e monarquias que nunca foram vistas nem conhecidas como verdadeiras. Com efeito, o que vivemos se distancia tanto do que deveríamos viver que aquele que abandona o que está fazendo para dedicar-se ao que deveria fazer acaba mais por se destruir do que se preservar”.

Os profetas se enganaram: não há o fim da historia, não há sociedades felizes nem futuro radioso. Aqueles que acreditaram nisso destruíram os homens e as sociedades em que viveram. E, no entanto, nem por isso é preciso renunciar à visão de sociedades mais justas, menos alienantes, nas quais os homens seriam mais inclinados à sublimação que à idealização ou ao recolhimento em si mesmos.

Se, como pensava Castoriadis (1997), “falar já é sublimar”, estamos prontos para dar vida ao aforismo de Nietzsche: “É uma bela loucura, falar – com isso, o homem dança sobre e acima de todas as coisas”, e poderemos, ao aceitar a divisão originária no social e no individual (o inconsciente e o consciente permanecem clivados), encontrar aquilo que Nietzsche chamou de caos; ou seja, favorecer a criação de uma sociedade que “dança” e não a de uma sociedade que “pesa”.

Por: Eugène Enriquez, Université Paris VII

Fonte: Internet, doc pdf