sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Antropologia na América Latina...

A antropologia sempre desenvolveu um papel importante na comunicação entre os povos. É, portanto, paradoxal que os antropólogos dos diferentes países da América Latina mal se conheçam. No Brasil, o pouco que sabemos do que fazem os colegas de outros países latino-americanos, nos chega principalmente, através de publicações em língua inglesa, embora todos nós compreendamos o espanhol, sem nenhum preparo maior de que o de ter nascido em um país que fala português, e de conhecer um pouco de um vocabulário diferente. O contacto com as antropologias dos grandes centros produtores de teoria, especialmente, os Estados Unidos, França, e Inglaterra nos enriquece, mas temos interagido pouco com as diversas antropologias da América Latina. Sabemos que a antropologia mexicana, ou das nações andinas, por exemplo, são academicamente excelentes, e que representam fatores da maior relevância para a construção da identidade nacional desses países. A falta de comunicação entre antropólogos latino-americanos faz parte de um quadro mais amplo. Nós brasileiros sentimo-nos particularmente isolados, não só por esta língua estranha que falamos, como também por uma serie de aspectos políticos que nos tem afastado de nossos vizinhos. O isolamento embora acentuado, no caso brasileiro ocorre também entre os países de língua espanhola.

Os trabalhos apresentados neste volume resultam do seminário latino-americano de antropologia, que organizei em Brasília, em junho de 1987, com o fim de iniciar um processo de trocas intelectuais entre os antropólogos latino-americanos. A idéia de organizar este seminário surgiu durante a assembléia geral do Instituto Pan-americano de Geografia e História, realizada no Rio de Janeiro, em 1984. Naquela ocasião, encontrei historiadores, arqueólogos e geógrafos de diversos países, desenvolvendo intensa atividade em comitês e grupos de trabalho. Eu era o único antropólogo presente. Pude então perceber como está desarticulada a antropologia, a nível continental. Assisti com admiração, o relato do professor Antonio Cândido, sobre o projeto "História das Idéias na América", coordenado pelo mestre mexicano Leopoldo Zea. Nesta oportunidade, Antonio Cândido mostrou, que o Brasil não mais apareceria como um capítulo esquecido no final da obra resultante do projeto. Pude também me lembrar de ter conhecido nos Estados Unidos, com o título de Amazonian Cosmos, dez anos após sua publicação em espanhol, uma obra prima da etnologia sul-americana, o livro Desaña, de autoria do antropólogo colombiano Gerardo Reichel-Dolmatoff. Tais acontecimentos testemunham que o nosso intercambio é mínimo, em que pesem os esforços de pioneiros, como Guillermo Bonfil Batalla, Roberto Cardoso de Oliveira e outros.

Esta falta de relacionamento, tem algumas de suas razões na própria antropologia. Nós antropólogos, estudamos em geral, sociedades de pequena escala e algumas vezes, a visão particularista anula a consideração de aspectos mais abrangentes. De outro lado, algumas versões da teoria antropológica tendem a eliminar a percepção de problemas comparativos. Assim, freqüentemente, o preço que a antropologia paga pela precisão e a profundidade de análises fundamentadas em boas etnografias, tem sido, o esquecimento de que o pequeno grupo estudado é apenas um dentre muitos. O estudo da diversidade cultural tem levado, contraditoriamente, à transformação do particular no absoluto. Assim, é muito comum que a pequena tribo, na qual o antropólogo desenvolveu seu trabalho de campo, torne-se para ele, algo como o paradigma da experiência humana.

Há, entretanto, razões políticas e culturais que também têm impedido a colaboração entre antropólogos do continente. As ideologias nacionais americanas, sempre tenderam a ocultar o papel das populações politicamente dominadas, principalmente daquelas identificadas por um componente étnico particular. Cada país sempre tem procurado enfatizar sua relação privilegiada com a herança ibérica ou com a de outros países europeus. Por outro lado, cada país latino-americano, busca sua identidade por oposição aos demais, especialmente aos vizinhos, que não estariam tão próximos do "mundo civilizado". O ocultamento do índio ou do negro, ou de qualquer outra categoria social geradora de identidades, relaciona-se com o principio de oposição entre os países. Para que digam essas ideologias "somos diferentes do restante da América Latina" é necessário que antes afirmem, "não somos nem índios nem negros, nem camponeses". O problema não se esgota, na especificidade da dimensão étnica, associada a oposições nacionais. Inclui também, culturas regionais, culturas de migrantes europeus recentes, de migrantes asiáticos, culturas urbanas, rurais, e de camadas sociais diversas. Essas diferenças são matizadas de acordo com o principio de associação da nação com aqueles grupos considerados como superiores, do ponto de vista étnico ou de qualquer outro. A antropologia, interessada nessas categorias ditas "minoritárias", questiona essas ideologias tradicionais. Incorpora essas categorias à própria concepção de nação, implicando no encontro de faixas comuns de identidade entre os diversos países da América Latina, como um problema fundamental.

A ciência social muito tem oferecido para a descoberta de uma consciência latino-americana. A sociologia já nos deu uma teoria da dependência. A ciência econômica, já produziu uma abordagem "estruturalista", cepalina. Não é do feitio da antropologia atual, acredito, a construção de grandes teorias, no mesmo nível de generalização destas. Somos, no entanto, antropólogos, mestres em construir e desfazer identidades. Podemos contribuir decisivamente para a visão que nossos povos tem de si mesmo e uns dos outros. Aliás, na construção de uma identidade latino-americana, não pode ser esquecido o papel desempenhado pela literatura de nossos países. A cidade de Macondo, e seus habitantes descritos por García Márquez em Cem Anos de Solidão, é a cidade de todos nós. Encontramo-nos culturalmente em Borges e Vargas Llosa. Com este último nós brasileiros temos um débito especial, pela edição em espanhol de seu livro A Guerra do Fim do Mundo retratando a guerra brasileira de Canudos.

Este volume especial do Boletin de Antropologia Americana procurou seguir as linhas gerais de organização do seminário latino-americano de antropologia. A primeira parte reúne esta introdução, as 'palavras da presidente da Associação Brasileira de antropologia (ABA), professora Maria Manuela Carneiro da Cunha, e a conferencia de abertura do evento, de autoria do professor Roberto Cardoso de Oliveira. Nossa presidente da ABA, no seu discurso de boas vindas, apresenta aspectos da nossa antropologia, e da ABA. O professor Roberto Cardoso de Oliveira, mestre de gerações de antropólogos brasileiros, traça um quadro geral das antropologias periféricas.

A segunda parte consiste em uma apresentação das antropologias nacionais. Para que as ciências, assim como as pessoas, se conheçam, é necessário que sejam apresentadas umas as outras. Daí da organização do seminário, constar um balanço da antropologia na América Latina. Nos debates ficou evidenciada a existência de três grandes linhas na antropologia latino-americana. Estas seriam a antropologia mexicana, antropologia andina e antropologia brasileira. A caracterização de cada uma delas, não foi motivo de consenso. Além dessas três grandes linhas apareceram casos específicos como os das antropologias da Venezuela e Argentina.

A terceira parte inclui a apresentação de temáticas importantes no quadro da antropologia latino-americana. São apresentados trabalhos, sobre aspectos diversos, como estudos sobre índios brasileiros, cultura e ideologia nacional, investigação participante e historia da antropologia. Aprofundam temas particulares, não apenas explorando o que se propunham, como ainda evidenciando aspectos originais da nossa antropologia latino-americana.

Esta publicação representa um passo na busca da integração das antropologias dos países latino-americanos. O conhecimento pessoal entre os participantes da reunião, ofereceu a oportunidade para a articulação de uma rede latino-americana de antropólogos, que espero, deverá crescer. Tais efeitos do recente processo político de aproximação entre os países do continente, deverão por sua vez, ter conseqüências, em termos de cooperação acadêmica e na construção de uma consciência latino-americana.

Autor: Antropólogo George de Cerqueira Leite Zarur

FONTE: Blog George Zarur